O mistério da camioneta fantasma

Francisco Martins Rodrigues

Apoiado na consulta da do­cumentação existente, Hélder Costa oferece-nos nesta sua nova peça O Mistério da camioneta fantasma, Teatro da Barraca, Lisboa. barraca@mail.telepac. pt) uma explicação para o mis­tério que até hoje rodeia os cri­mes da “noite sangrenta” de 19 de Outubro de 1921, quando, na onda de mais um golpe militar, grupos aparentemente descon­trolados de marinheiros e civis percorrem a cidade numa “cami­oneta fantasma” à caça de diver­sas personalidades eminentes do regime, que acabam assassinadas.

A tese defendida pela peça é li­near: as vítimas eram “heróis da República”; os assassinos eram marginais manipulados e pagos por conspiradores de direita, en­tre eles Carlos Pereira, dono da Companhia das Aguas, e Alfredo da Silva, o patrão da CUF, agindo em conluio com o rei de Espanha e com outros estrangeiros; o ob­jectivo seria, para uns instaurar uma ditadura fascista (estamos a cinco anos do golpe do 28 de Maio), para outros restaurar a monarquia e, por isso mesmo, punir com a morte os republica­nos responsáveis pelo regicídio.

Apesar da eficaz dramatiza­ção dos acontecimentos conse­guida pela larga experiência de Hélder Costa e pelo trabalho dos actores, a tese é altamente discu­tível, como sublinhou Fernando Rosas no debate que se seguiu à representação. Com efeito, os conspiradores não eram margi­nais, dispostos a matar a troco de dinheiro, como surgem na peça, mas adeptos da acção revo­lucionária directa, ligados à forte corrente libertária, então implan­tada no proletariado e nos mari­nheiros da Armada; e as vítimas há muito tinham perdido a aura de “heróis da República” e ti­nham passado a ser odiados no meio popular pela sua adesão às forças de direita.

Tudo indica, defendeu Rosas, que se tratou de uma acção de meios da esquerda que tentaram aproveitar a confusão causada pelo vazio de poder para um ajus­te de contas com gente destaca­da da ala direita do regime (o pró­prio Alfredo da Silva, apresenta­do na peça como inspirador da “noite sangrenta”, era um dos alvos a abater e só escapou por acaso). E não é pelo facto de pos­teriormente a ditadura de Salazar ter usado este episódio como pa­pão dos horrores da anarquia e do “bolchevismo” que devemos sentir-nos obrigados a uma espé­cie de “defesa da honra da es­querda” segundo a qual o recur­so à violência seria um exclusivo da direita.

O mistério da camioneta fantas­ma foi editado em livro pela Colibri em 2001.

Política Operária nº 102, Nov-Dez 2005

 

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