A privação do sono

Francisco Martins Rodrigues

A privação do sono

(s. d.) [1966]

Entrei na sede da PIDE pelas 21:30 horas do dia 30 de Janeiro. Mandaram-me despir. Obedeci. Depois de me revistarem, devolveram-me as roupas. Entrou então o chefe de brigada José Gonçalves e vários agentes. Perguntou-me o nome. Disse que nada tinha a responder. Imediatamente, começaram a dar-me socos e pontapés, insultando-me e ameaçando-me de morte. Eu nada disse. Retiraram-se e veio um outro inspector, com modos correctos, que, sem nada me perguntar, mandou fazer um curativo, pois sangrava do nariz e dum lábio e tinha um sobrolho deitado a baixo. Fizeram-me o curativo e levaram-me para um gabinete no último andar, na secção reservada para os interrogatórios e espancamentos. Comecei pois imediatamente uma sessão de privação de sono.

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RELATÓRIO AO CMLP

Francisco Martins Rodrigues

RELATÓRIO AO CMLP[i]

(s. d.)

Como não sei se foram recebidos os dois relatórios anteriores, repito a descrição do meu porte na PIDE, procurando ser o mais completo possível.

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Cartas a CF – 4

Francisco Martins Rodrigues

Carta a CF – 4

20/12/1990

Caro Camarada

Respondo à sua carta de 16 de Outubro. Não o fiz antes porque estava em falta quanto à promessa de lhe mandar cópias de “Avantes” pare a sua colecção. Posso agora informá-lo de que segue por correio separado uma primeira encomenda com fotocópias, algumas de leitura difícil mas foi já assim que  me chegaram à mão. Dentro de uma semana ou duas irá outra encomenda. Quanto a despesas de remessa não se preocupe. Vou-lhe mandar a minha lista de faltas e agradecerei que você me retribua…

Quanto a eu escrever sobre as minhas vidas passadas, não é a primeira pessoa a insistir comigo mas ainda não arranjei disposição mental para isso. Desconfio que será só quando estiver todo tolhido pelo reumático (o que se calhar já não faltará muito). 

Ainda não me chegou às mãos nenhum dos livros de que fala na sua carta (Valtin e Campesino). Terei muito interesse em conhecê-los.

Com as minhas saudações

Cartas a MV – 5

Francisco Martins Rodrigues

Carta a MV (8)

28/5/1986

 

Caros camaradas:

Ainda não recebemos resposta à nossa carta de 14 de Fevereiro e estamos muito preocupados com o vosso silêncio tio prolongado. Esperamos que não seja motivado por quaisquer problemas pessoais graves nem por desinteresse em relação ao nosso projecto. Escrevam mesmo só umas linhas para sabermos que estão bem. Temos recebido os vossos jornais e revistas e enviámos há dias para a vossa mo­rada o último nº 2 daPO”. Algumas notícias:

Solidariedade contra a repressão – organizámos, em colaboração com elementos independentes, FUP e trotskistas e também com a UDP, uma associação que lançou um abaixo-assinado e um boletim, de que enviamos exemplares. Desfilámos no 25 de Abril com faixas da “Po­lítica Operária” e juntos com as famílias dos presos da FUP. Esti­vemos na vigília de Caxias, na véspera do 25 de Abril e lemos lá uma saudação da OCPO. Parece-nos que a luta contra a repressão se torna importante, dado o avanço do regime na criação de estrutu­ras de polícia secreta. Poderão vocês aí em Paris fazer alguma agitação em torno do problema, criar algum comité de apoio, etc.?

Almoço-debate de 5 de Maio – também em colaboração com inde­pendentes, FUP e trotskistas (mas neste caso sem a participação da UDP), lançámos um manifesto conjunto sobre o centenário do 1º de Maio, organizámos a participação conjunta na manifestação da CGTP e vamos fazer um almoço-debate comemorativo, que se espera que tenha de 150 a 200 pessoas. Esperamos com estes contactos “sair da casca” e conhecer gente desorganizada de esquerda com quem possamos trabalhar.

Jornal sindical – já vos falámos deste projecto na nossa car­ta anterior. Fizemos uma reunião em Setúbal com alguns elementos interessados e estamos a procurar criar uma base de ligações que permita a sua edição. Seria uma espécie de Tribuna das empresas, com denúncias, coisa que aqui não existe e faz uma falta tremenda. Estamos a preparar um nº 0, experimental, para ganhar mais apoios.

Assembleia – Está marcada definitivamente para 7-8 de Junho a nossa 2ª Assembleia anual, que discutirá o relatório de activi­dade da direcção, questões de linha política e elegerá a nova di­recção. Enviamos por correio separado a “Tribuna Comunista” nº 5 com os primeiros materiais para discussão. Pedimos que leiam es­tes documentos e nos façam chegar as vossas opiniões, a tempo de serem tomadas em consideração na Assembleia.

Internacional — temos mantido contactos estreitos com o Marxist-Leninist Party dos EUA e vamos receber no dia 16 de Maio um diri­gente deste partido. Preparamos os pontos para debate neste encontro. Informaremos depois do resultado. Começámos também a corresponder-nos com o PC do irão, que nos enviou grande quantidade de publicações que estamos a estudar. Como podereis ver pelo relató­rio, pensamos que começam a surgir perspectivas para um reagrupamento de uma nova corrente comunista internacional independente dos oportunismos do PTA, PC do Brasil ,etc.

Situação financeira – estamos prestes a assinar um contrato pa­ra fazer diversos livros até ao fim do ano, o que nos exigirá e permitirá trocarmos a máquina de composição actual por outra me­lhor. O negócio envolve mais 2.000 contos, mas é a única maneira de ficarmos equipados a sério e podermos aceitar todas as encomendas de trabalhos comerciais. Como calculam, isto é vital para ga­rantirmos a continuidade e independência do nosso projecto. No relatório da direcção à Assembleia, poderão ver os números prin­cipais das nossas contas neste ano de existência.

Neste momento, estamos a apelar à elevação das contribuições e à actualização das que estão em atraso, para podermos fazer face a este novo desafio (…)

E é tudo. O ZB está a trabalhar na Suíça, esperamos que possa regressar brevemente, logo que faça unas massas. Está lá também o ZM quo nos escreveu e apoia a revista. Pe­dimos que não se ocupem a mandar o “Parti san” (passámos a receber directamente) e a “Teoria y practica” (vamos fazer assinatura). Escrevam depressa. E mais bonecos? Um abraço

Carta a MV (9)

26/6/1986

Camaradas:

Temos recebido livros, revistas e bonecos do M, mas só uns pequenos bilhetes a acompanhá-los e não a carta detalhada que postaríamos de ter da vossa parte, para nos apercebermos melhor dos vossos problemas e perspectivas de actividade. Soubemos pelo R que pensam vir aqui em fins de Julho e esperamos nessa al­tura ter um dia para uma discussão a sério de todos os nossos problemas. Seria bom que nos avisassem com antecedência do dia que terão disponível para estar em Lisboa connosco.

A seguir damos as notícias mais importantes sobre o que es­tamos a fazer.

PO nº 5 – Enviamos pelo R apenas 3 exemplares porque sa­bemos que têm bastante dificuldade em colocá-la aí. Se estiverem de acordo, será esta quantidade que pastaremos a enviar. Este número saiu com algumas semanas de atraso por dificuldades de to­da a ordem, mas parece-nos que mantém o nível dos anteriores; ainda não é desta que entramos nos grandes problemas de fundo, mas a pressão dos acontecimentos e o quadro reduzido dos nossos redactores não nos deixou fazer melhor. Como verão, temos um novo colaborador, MC, de quem vocês se devem lembrar. Está disposto a fazer uma série de artigos e a sua perspectiva parece-nos correcta. E colaborações do M? Não compreendemos por que não mandas nada, nem que seja a Carta de Paris. Só se é por não gostar de nós.

Decidimos adiar o nº que calhava no período de férias porque a venda seria muito difícil. O nº 6 sairá em fins de Setembro-princípios de Outubro e tentaremos aproveitar este intervalo maior para trabalhar alguns artigos mais de fundo e, se possí­vel, fazer um nº melhorado para comemorar este primeiro aniver­sário. Discutiremos convosco o sumário e a v/colaboração.

Pensamos também fazer na altura uma campanha de publicidade para tornar a revista mais conhecida. As vendas têm tido uma certa quebra, que aliás esperávamos: houve um movimento inicial de curiosidade que levou a esgotar o nº 1. Mas à medida que um certo número de pessoas de tendência social-democrata se aperceberam da orientação da revista, deixaram de a comprar. Estamos a colocá-la numas 25 livrarias de Lisboa, mais umas 20 na provín­cia, mas a venda principal é a venda militante. Temos umas 100 a 150 de sobras, que se vão vendendo depois lentamente. Aproveita­mos manifestações, Feira do livro, etc., para mostrar a revista a público. O desafio que temos pela frente é descobrir os leito­res de esquerda que ainda ignoram a nossa existência e isso de­pende sobretudo da acção militante.

Assembleia – depois de vários adiamentos, realiza-se em definitivo nos próximos dias 5 e 6 de Julho. Já conhecem o relatório de actividade da direcção que vai ser discutido. Seguem junto as Tribunas nº 6 e 7 e, se possível, ainda vos enviaremos antes da­quela data outras duas que devem sair com materiais para discus­são. A Assembleia está a ser preparada por uma comissão organi­zadora com dois elementos da direcção e três dos núcleos para assegurar completa democracia. Temos feito diversas reuniões preparatórias envolvendo a maioria dos camaradas. Principais problemas em debate, para além dos que estão no relatório;

  • definição da situação de diversos camaradas que têm fun­cionado na prática mais como simpatizantes do que como membros da OCPO. Lutamos pela aplicação do artº 1º dos estatutos, tentando ganhar todos os camaradas como mem­bros activos, mas não conseguiremos evitar que alguns pas­sem a simpatizantes, porque é esse o seu desejo. Ê o caso dc R. Como não há perspectivas imediatas de recruta­mento e entretanto já perdemos alguns outros camaradas, esta situação preocupa-nos. O principal é mentalizar o conjunto dos camaradas para a ideia de que não há nada de dramático na situação de sermos um pequeno grupo, combater o pânico. Há épocas para estar num partido e há épocas pa­ra estar num grupo.
  • a atitude perante as eleições (as que houve e as que pode­rá voltar a haver dentro de meses) tem gerado bastante po­lémica. Embora todos concordem em que essa não é neste mo­mento uma questão prioritária para nós, dada a nossa es­cassíssima influência, o certo é que em torno da abstenção ou não abstenção se geram divergências. A direcção não foi capaz de apresentar um balanço de sua autoria e iremos con­frontar opiniões pessoais; em todo o caso, não pensamos que as divergências sobre esse assunto se tornem graves, pelo menos nos tempos mais próximos.

Quanto àfutura direcção, procede-se a consultas e a co­missão organizadora apresentará uma lista de candidatos à Assembleia. O G saiu da direcção há já meses por razões que todos consideraram injustificadas; na realidade, segundo pensamos, porque nunca se sentiu bem com essa res­ponsabilidade; o ZB teve que emigrar para a Suíça à procura de trabalho por se encontrar em situação aflitiva; está agora connosco (partiu um pé e veio-se tratar cá) mas voltará para lá mais 3 meses, a cumprir um contrato. Está moralizado e garante-nos que estará aqui de vez em Outubro. Os restantes continuam a funcionar, mas muito as­soberbados com trabalho, sobretudo desde que nos começámos a meter mais na intervenção política.

A vossa participação na Assembleia poderá fazer-se, de acor­do com os estatutos, através do voto por correspondência, com quaisquer declarações que entendam úteis e que serão levadas ao conhecimento da Assembleia. Achamos de bastante interesse que o façam, tanto sobre o relatório da direcção como sobre outros as­suntos. Se ainda nos for possível, enviar-vos-emos os projectos de moções que vão ser postos à votação, para que se pronunciem por carta. Achamos que o vosso afastamento não deverá impedir a vossa participação no essencial dos trabalhos.

Internacional – como tínhamos informado, estiveram entre nós dois dirigentes do MLP dos EUA, com quem tivemos uma semana de discussões bastante frutuosas; quando nos encontrarmos em Julho poderemos informar detalhadamente do que se tratou. Para já, re­sumidamente, podemos dizer que há um acordo no essencial; o en­tendimento do marxismo-leninismo como a demarcação nítida dos interesses do proletariado e portanto, a crítica às correntes burguesas democráticas, nacionais, etc., a crítica à linha do 7º congresso da IC, a crítica ao rumo da União Soviética desde os anos 30, a crítica ao PTA, a crítica às revoluções tipo sandinistas, etc. Alguns pontos em que fazemos apreciações diferentes: a corrente ML é ML com erros (tese deles) ou é apenas centrista? centralismo de­mocrático significa monolitismo (tese deles) ou esse conceito deve ser rejeitado? Os últimos 50 anos tiveram grandes vitórias (tese deles) ou devem considerar-se 50 anos de derrotas? não in­teressa destrinçar qual dos dois blocos é mais perigoso (tese deles) ou deve-se dizer que o imperialismo EUA é o principal inimigo?

Vamos continuar a debater mas ficámos com uma impressão geral bastante boa. Eles publicaram recentemente um longo artigo no jornal deles a nosso respeito. Infelizmente não temos cópia feita para vos enviar, mostrar-vos-emos quando cá vierem.

Quanto ao PC do Irão, como já dissemos antes, entrou em con­tacto connosco e mandou-nos muito material que estamos a estudar. Parece-nos ter algumas fraquezas teóricas, como poderão ver pelos extractos do programa que publicamos na PO 5 mas é um partido com real base de massas e que se bate de arrumas na mão contra o Khomeiny. Do PC da Nicarágua (ex-MAPML) é que ainda não obtivemos nada mas, pelo que temos lido, parece-nos ser um partido sério, que conjuga uma posição anti-imperialista inequívoca com uma crí­tica aberta aos sandinistas e às suas incoerências.

Tribuna Operária – seguem junto 3 exemplares do nº 0, que temos estado a fazer circular entre sectores operários que toca­mos, para ver se ganhamos base de apoio para a sua edição defi­nitiva. Só por nós não podemos fazer um jornal destes: precisamos de recolher notícias e informações de muitas empresas e ter uma rede de difusores. Vamos usar estes meses do Verão para tentar criar uma equipa de redacção e difusão, com vistas a iniciar pu­blicação regular em Outubro. Está em preparação um encontro sin­dical com activistas de vários pontos do país (alguns deles ex-UDPs) para Setembro. A dificuldade aqui resulta do facto de a ini­ciativa ser disputada por outros agrupamentos e nós não queremos fazer um consórcio de grupos, que acaba sempre em guerras.

O almoço comemorativo do centenário do 1º de Maio, de que já tínhamos falado, fez-se com 130 pessoas, na maioria operários, e intervenções dos representantes dos vários grupos promotores. Teve um efeito positivo na ideia de que se pode começar a reagru­par a esquerda.

cnico/finanças – acabamos de dar um novo grande salto em frente” com a troca da máquina da composição por outra mais evo­luída que nos permitirá agarrar encomendas de livros e trabalhos de mais vulto. Evidentemente, empenhámo-nos até a raiz dos cabe­los (mais uma vez) mas pensamos não estar a ser aventureiros. SÓ o futuro o dirá, e o nosso esforço, evidentemente; discutiremos também este assunto convosco quando cá estiverem. Recebemos os dois vales que mandaram (…) que saldaram as vosas dívidas em publicações. Vocês dir-nos-ão em Julho se têm possibilidade de manter uma quotização regular.

Bonecos Zav – receamos que Zav esteja desgostoso com o pouco apro­veitamento que temos dado aos bonecos. Isto não resulta de de­sinteresse da nossa parte. Pelo contrário, temo-los apreciado atentamente porque sentimos muito a necessidade de comentários gráficos; os reparos que têm sido feitos aos bonecos são os se­guintes; o humor amargo e por vezes brutal (o que  é um de­feito) torna-se em muitos casos difícil de apreender pelo lei­tor comum; as críticas a acontecimentos nacionais surgem com muito atraso, perdendo actualidade; há um certo número de piadas relativas à emigração que só se justificariam como ilustração a um artigo sobre o assunto (ex: a excelente venda de emigrantes às postas) mas a dificuldade é que não temos cartas de Paris.

Propomos pois que o Zav se procure inspirar em temas (nacio­nais ou internacionais) tratados na revista, que não sejam de mera conjuntura eleitoral, para não sofrerem com a perda de ac­tualidade. Sugestões: o povo espera pacientemente na bicha da sopa dos pobres que Cavaco, Soares, Eanes, etc. decidam nos seus congressos se vão aliar-se ou guerrear; parabéns ao gene­ral Pedro Cardoso, super-comandante da nova PIDE; 183 novos de­sempregados em cada dia – avançamos aceleradamente para níveis europeus; Cunhal nega terminantemente que existam divergências no PCP, enquanto atrás da cortina se esmurram eurocomunistas e “ortodoxos”; etc, etc. Também as questões internacionais poderiam ser tema para bonecos: como o massacre dos presos políticos no Peru pelo social-democrata Alan Garcia, na presença da social-democracia internacional; os massacres de negros na Africa do Sul, etc, etc.

Por agora é tudo. Acabamos esta carta para a entregar ao R, que vai partir. Até breve, abraços para vocês de todos nós.

 

 

Não fui eu que me evadi?

Francisco Martins Rodrigues

Lisboa, 14 Janeiro 1985

À Redacção de “O Jornal”

Exmo. Sr. Director

Com surpresa, tonei conhecimento pelo Jornal da semana passa­da de que não fui eu que me evadi do forte de Peniche em 3 de Ja­neiro de 1960 mas sim um indivíduo de nome Rolando Verdial. Se não me recordasse tão distintamente do que se passou nessa noite, esta insistente omissão do meu nome (porque não foi só O Jornal que o fez, mas também O Diário, o Avante, a televisão, etc.) ainda poderia acabar por me provocar uma crise de identidade. Mas, por enquanto, continuo firmemente convencido de que, de facto, fui um dos que desceram a muralha do forte de Peniche em 3 de Janeiro de 1960 por una corda feita com lençóis.

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Histórias do fascismo e do antifascismo

Francisco Martins Rodrigues

Convidado a participar em dois debates por oca­sião do 25 de Abril (o primeiro no Centro de Artes e Ofícios de Odivelas e o segundo no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas), o director da P. O. evo­cou aí aspectos da luta contra o fascismo. Apresenta­mos aqui, com ligeiras adaptações, o texto dessas in­tervenções.

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