Carta a João Pulido Valente

Francisco Martins Rodrigues

Carta manuscrita enviada de Paris – para onde fora destacado pelo PCP ainda enquanto militante, mas já expulso à data em que escreve – a João Pulido Valente

29 de Março de 1964

Meu caro João[i]:

A tua carta e as notícias que já tinha acerca da tua posição deram-me uma grande alegria. Num momento difícil como aquele que temos vindo a atravessar, é bom encontrar ao nosso lado os velhos companheiros de luta, não é assim?

Tu compreendeste já perfeitamente as razões da minha posição, para ti não é necessário desenvolver largas explicações, como me tem acontecido com outros camaradas aqui, que me perguntam se a minha posição não será o resultado de eu estar cansado da luta, se não será uma manifestação de ambição e vaidade da minha parte, se não será o desejo de descarregar despeitos pessoais à custa do Partido, etc., etc. Felizmente, conheces-me o suficiente e conheces o suficiente da situação no nosso país para compreender que todas essas hipóteses são disparatadas, e que há razões decisivas a obrigar-nos a agir. Como tu dizes, não tomei esta posição de ânimo leve; foram muitos e muitos meses de reflexão, de preocupações, de angústias, posso dizê-lo sem exagero; mas à força de reflectir e de discutir com aqueles de quem esperava um esclarecimento, acabei por concluir em Agosto[ii] que esses camaradas não são capazes de ir mais longe e que, com o correr dos acontecimentos podem vir a tomar posições muito graves, qie comprometam o êxito da nossa causa e o seu passado de lutadores. Entrei neste caminho, não poe sentir afrouxar o meu espírito de luta nem por diminuírem as minhas convicções, mas porque sinto com mais força do que nunca as responsabilidades que nos impõe o nosso ideal; é o caminho mais difícil mas é o único sério e eu perderia o respeito por mim mesmo se não o tomasse, só por rotina e comodismo. Se eu quisesse uma situação tranquila, era só aproveitar as ofertas que me fizeram de me trazer a minha companheira, me arranjar um bom emprego, etc., desde que eu me calasse. Soluções dessas não me servem. É claro que esta posição vai acarretar grandes dificuldades, além das que já acarretou; como tu prevês, já se “descobriu” que eu sou um gatuno, já se insinua em circulares que o meu fim será nos grupos de café “mais ou menos apoiados pela PIDE”, já se lançam invenções de que acompanho com provocadores e elementos suspeitos; o resto virá a pouco e pouco, calculo; este género de guerra de calúnias, que atemoriza muitos militantes de acordo connosco, e que por causa disso não se atrevem a tomar uma posição, não me assusta porque tenho uma confiança inabalável nos nossos princípios, no triunfo da nossa causa; será a nossa acção e o correr dos acontecimentos que revelará quem são os revolucionários e quem são os oportunistas, quem são os lutadores honrados e quem são os que fogem aos sacrifícios. Neste momento, somos poucos e tudo são dificuldades e incertezas, mas não tenho dúvida nenhuma de que as causas justas abrem caminho de qualquer forma, atraem os bons elementos, galvanizam e transformam os elementos fracos. A única coisa que temos a fazer é lutar com a força que nos dá a certeza da nossa razão, a compreensão que temos dos erros dos outros, a nossa confiança total na capacidade revolucionária dos trabalhadores, do povo. Estou certo de que não teremos de esperar longos meses para começar a ver resultados da nossa acção. As condições são muito favoráveis e elas frutificarão desde que trabalhemos a sério e não façamos erros muito graves.

Sobre todos os problemas gerais que levantas na tua carta, vai a resposta que vemos neste momento, na carta junta, que é dirigida ao colectivo aí. E isto levanta um problema que me parece essencial: tu falas bastante no que eu penso, no que eu quero fazer, etc., mas é necessário compenetrares-te bem, camarada, de que só uma colaboração estreita de todos nós, um trabalho colectivo, uma divisão de tarefas, nos podem permitir romper rapidamente para a frente. Sobre todas as questões gerais de orientação, assim como sobre a vossa actividade aí, é preciso que dês a maior participação possível, que discutas tudo aí em colectivo com os companheiros que aí estão, que cheguem a conclusões e que actuem com iniciativa própria. Não tenho dúvida nenhuma de que, pelo menos por enquanto, tenho responsabilidades especiais e um encargo muito pesado, dada a experiência e ligações, dada a situação especial que resolvemos criar para mim. Mas isso não evita a necessidade de uma discussão muito aberta, muito intransigente entre todos nós, para reunirmos as experiências de todos e evitarmos os erros. Em relação à Declaração Política, às propostas e directivas que vos mandamos na carta junta, é importante que estabeleçam aí discussão e nos comuniquem as opiniões; não é preciso estarem à espera de poder elaborar longos relatórios que acabam por cair na burocracia; mandem, mesmo em resumo, a vossa opinião sobre as questões principais, o sumo dos problemas. E sobretudo, actuem para a frente, estamos de acordo nas linhas gerais e isso deve livrar-nos de qualquer receio de agir com iniciativa, é na acção que as dúvidas e discordâncias se esclarecem e se vê onde estão os erros. Tenho-te conhecido como um homem antiburocrático e creio que compreenderás a exigência que se nos coloca de agir. Já perdemos muitos e muitos meses preciosos, todos nós, por andarmos à procura de um caminho de saída; agora que o estamos a ver, é preciso audácia e iniciativa, fazermos com que cada núcleo de companheiros actue sem perder tempo. A disposição individual de cada um de nós é muito importante, mas a conjugação dos nossos esforços é ainda mais importante.

Tu falas na tua carta na tua disposição total que tens de servir a nossa causa onde quer que venha a ser preciso, aí ou no interior. Como deves calcular, o nosso esforço todo neste momento no exterior tem em vista criar uma base de apoio que permita passarmos para o interior num breve prazo. Continuará sempre a ser necessário dispormos de companheiros (e bons companheiros) no exterior mas não tenho dúvida nenhuma de que todos os que tenham condições e disposição para enfrentar o inimigo directamente no interior vão ter brevemente ocasião de o fazer. Nós sabemos bem que há um trabalho decisivo a fazer no sentido de lançar a acção armada popular, de desenvolver rapidamente a iniciativa das massas¸isso não se poderá fazer espontaneamente, terá que contar com a actividade impulsionadora de um grupo de companheiros dispostos a correr todos os riscos. Estamos aqui neste momento fazendo um trabalho político que nos permite ir conhecendo os quadros, com vistas a preparar um núcleo para essa tarefa. Penso que todos os aspectos práticos em que possas ganhar uma preparação (conhecimento de formas de acção, preparação de materiais, etc.) devem ser aproveitados, poderão vir a ter a maior utilidade. Deveis ver aí (com cuidado e sem falar de mais) se há outros elementos seriamente dispostos a entrar no país, não para o “desembarque triunfal” mas para a dura luta armada clandestina. É claro que as possibilidades de via técnica a que te referes são da máxima importância, deves-me comunicar qualquer coisa em perspectiva, em carta para mim, explicando segurança e garantias que dá, como funciona, quando, etc., pondo em cifra o que for mais secreto.

Já contactámos (não eu, por enquanto) a pessoa daqui para quem deste a carta de apresentação. Recebeu bem, o embora se afirme um pouco desiludido das suas experiências políticas, mostrou interesse pela Declaração e desejo de ter uma discussão comigo, o que será brevemente. Quanto à pessoa de Londres, temos que aguardar por agora.

Em relação ainda ao meu caso, quero esclarecer-te de que a situação se criou aqui por depois da reunião de Agosto foi resolvido impedir o meu regresso ao interior, considerando que eu não dava garantias de não vir a fazer um trabalho de “cisão”. Saí do interior seguindo as instruções que me deram e para participar numa discussão em que eu, ingenuamente, ainda tinha certas esperanças; não voltei ao interior porque mo impediram. Esclareço isto porque a resolução do CC que me expulsa poderia dar outras ideias e há mesmo quem procure espalhar a versão de que fugi à luta. Falas-me da minha companheira: como bem calculas, é um problema que me preocupa, mas não lhe vejo solução imediata. As minhas cartas para ela vão naturalmente ser interrompidas e sei que ela está a sofrer uma pressão muito grande e que não lhe dão outra alternativa senão cortar comigo ou ser afastada e ficar numa situação difícil. É um problema que só lá em baixo poderá ser resolvido. Agora nada posso fazer. Para ela é uma prova duríssima, mas confio em que a suportará.

Quanto ao problema financeiro: a tua resolução teve uma importância decisiva e vai permitir-nos sair da teia de dificuldades em que temos estado envolvidos nos últimos três meses. Sobre os meios de que precisamos, vai um orçamento provisório na carta junta, para a primeira fase, preparatória, por assim dizer. É claro que todos temos a ideia de que só a recolha de fundos junto dos militantes e outras pessoas, o apoio externo que nos venha a ser proporcionado, podem enfrentar as necessidades. Mas neste momento a tua contribuição será decisiva, como tu bem compreendes; digo-te que contribuas com o que puderes, sem criares no entanto qualquer situação anormal (deixar de pagar as dívidas, etc.). Precisamos de todo o dinheiro possível mas não podemos basear-nos no sacrifício dum companheiro, temos que alargar os nossos meios de recolha o mais largamente possível, isso é que nos criará uma base sólida. És tu que deves definir a contribuição que podes dar regularmente, de acordo com a organização da tua vida. Para já, pusemos em prática as medidas que encarávamos quanto a mim e parece-nos que nos dás uma base para irmos para diante sem perda de tempo. Tu, que és um velho especialista destas questões, vê que possibilidades tens de recolher contribuições de gente no interior ou no exterior, apresentando o nosso programa e explicando para que queremos o dinheiro. É evidente que um apoio externo em profundidade está muito dependente do que consigamos fazer desde já pelos nossos próprios esforços; como é de calcular, abundam os grupos  mais ou menos sérios, alguns são mesmo aventureiros e aproveitadores e as pessoas que querem ajudar retraem-se e queres ver provas de seriedade, é natural.

Em relação a todas as possibilidades de ligação de contacto para o interior que tens, parece-nos que devem ser aproveitadas ao máximo: enviar a Declaração Política para onde puder ser enviada sem perigo, escrever a falar da situação que se criou, pedir auxílio, dinheiro, ligações, etc. É claro que isto significa tornares clara a tua posição política e seres definitivamente expulso do Partido: pensamos que o deves fazer sem hesitação, assim como outros companheiros daí, para podermos trabalhar abertamente e com independência, acabar com uma situação que a direcção do Partido procura ir arrastando e que só favorece a sua actividade. O parto tem que se dar porque a “criança” já está formada; é claro que é um parto com dor, ainda não se inventou o parto sem dor para estas coisas, mas é preciso começarmos a marchar em cima dos nossos pés e o mais depressa possível. Diz o que pensas disto e da evolução da tua situação perante o Partido. Não esqueças que neste caso a força do exemplo tem uma grande importância para a massa dos vacilantes; na carta junto desenvolvemos mais este problema.

E agora, caro João, despeço-me de ti com um forte abraço de camarada. Escreve-me (sem pôr nomes nas cartas), dá-me notícias tuas. Já casaste? (Que pergunta….). Eu escreverei regularmente, se não te respondi imediatamente é porque tenho andado envolvido até aos cabelos no trabalho profissional e nas actividades imediatas que se vão acumulando. Agora as coisas tomam melhor aspecto. A minha saúde, como sempre, está óptima, apesar de as tuas deformações profissionais verem doenças por toda a parte. Até breve, camarada, trabalhemos para que nos voltemos a abraçar o mais breve possível, na nossa terra, a lutar de armas na mão ao lado do nosso povo. Esse dia chegará e somos nós que o faremos chegar.

(assinatura ilegível)

Dentro de dias serás possivelmente procurado por um indivíduo ido daqui e que se apresentará da parte de Campos. Pessoalmente não o conheço, mas pertence a um grupo de gente séria (embora com algumas ideias torcidas) que nos tem dado ajuda prática quase sem saber nada a nosso respeito. Julgo que querem obter aí alguma confirmação sobre a nossa origem e seriedade, dá-lhe as referências necessárias mas não reveles nomes ou aspectos secretos do trabalho. Vê se ele aí te pode pôr em ligação com alguém de interesse, dos meios governamentais ou outros.

————–

[i] Carta manuscrita envia por FMR, de Paris – para onde fora destacado pelo PCP ainda enquanto militante, mas já expulso à data em que escreve – a João Pulido Valente, militante do PCP então exilado em Argel. (Nota de AB)

[ii] Na reunião com Álvaro Cunhal, Chico Miguel e outros dirigentes do CC do PCP, em Moscovo, na qual FMR expôs e discutiu os seus pontos de divergência com a linha do partido. (Nota de AB)

 

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