Francisco Martins Rodrigues
Carta a MV (58)
15/10/1998
Caro M:
Depois de um tão longo silêncio respondo aos teus postais dos últimos meses. A minha desculpa é a acumulação do trabalho e a complicação da minha vida familiar, que bem conheces.
As nossas actividades continuam no fogo lento a que estamos condenados enquanto não aparecer uma geração com novas inquietações e nova audácia para abanar esta barraca podre. Das coisas internacionais, não preciso de te falar, decerto acompanhas com mais dados do que eu. Cá do Portugalório, as notícias são de “modernidade”: casos de corrupção em grande e uma despolitização atroz das massas populares. Estão neste momento a seguir aviões de combate para o Kosovo, o ministro decidiu sem sequer se dar ao trabalho de ouvir a Assembleia da República para salvar as aparências. O PC protestou mas em voz baixa, está empenhado com o PS na grande campanha pela regionalização, julgam que vão ficar a governar o Alentejo. O pior é que a maioria da população inclina-se para a abstenção ou para o “não”. E mesmo que o “sim” viesse a ganhar o PS dava um pontapé no cu dos Pcs e ficava com as regiões todas.
Dentro de dias vais receber a P.O. 66. Acabámos por não aproveitar a tua sugestão de procurar bonecos do Zav na Eduarda Dionísio, de resto só falamos da Expo a propósito de uma falcatrua que lá houve de um milhão de contos, Como verás, traduzi um capítulo do último livro do Tom Thomas, gostaria de traduzir o livro na íntegra e editá-lo pela Dinossauro mas era fiasco comercial certo, o público daqui ainda não está alertado para os debates em tomo do fim do trabalho e os estudantes só se mobilizam pelas propinas.
Estivemos na sessão realizada pela Abril em Maio sobre a Expo, a Ana fez uma intervenção, encontrámos lá o Samir Amin e fizemos-lhe uma entrevista, vem nesta P.O. É uma cabeça interessante mas as suas perspectivas para a revolução mundial são muito reformistas, embora envolvidas em teses coloridas. Tu verás.
Recebemos os materiais que mandaste sobre o Brecht, desculpa não te ter avisado a tempo que o livro já estava fechado, ficámos por uma edição modesta, sempre com medo das despesas que não aguentamos. Tem-se vendido alguma coisa porque os jornais e os teatros sempre vão falando no centenário.
Agora temos para sair um álbum de postais ilustrados sobre o Império Colonial Português do princípio do século[1], é uma forma de nos associarmos às patrióticas iniciativas dos 500 anos das Descobertas. Faremos apresentação pública no dia 24, vamos a ver que saída tem. Também estamos a preparar uma edição das Veias Abertas da América Latina[2], livro já antigo do Galeano mas que aqui nunca foi editado. Como já se começa a falar nos 500 anos do descobrimento do Brasil, é a altura própria. Vamos a ver o que dá.
E tu, não mandas nada para a P.O.? Nem que sejam uns recortes de imprensa> vai-te lembrando de nós. Quando vens a Portugal? Abraços para ti e para a V.
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[1] O império a preto e branco, colecção de fotografias de época, selecionadas e comentadas por Ana Barradas. (Nota de AB).