Novas lições da Revolução Russa (3)

Francisco Martins Rodrigues

(Elementos para uma plataforma comunista)

Terceira  parte

Staline

38. Andámos a defender Staline como o líder do proletariado mundial, não pode­mos agora escondê-lo debaixo do tapete. A desculpa de que Staline se limitou a ser o intérprete de determinadas condicões históricas é uma escapatória tão antimarxista como a dos que atribuem o sentido da história ao livre arbítrio de indivíduos. É uma espécie de ‘culto da antipersonalidade’.

Não vamos fugir à discussão de Staline a coberto da sociologia. As ideias, os escri­tos, a personalidade de Staline, têm que ser apreciados porque apresentam de forma concentrada uma dinâmica e urna lógica de classe, são a documentação viva da agonia da ditadura do proletariado e do ascenso do regime capitalista de Estado na URSS. É tempo de iniciar o estudo sistemático das obras de Staline.

39. A corrente ML pró-albanesa diz (de forma cada vez menos convicta, é ver­dade) que a questão do stalinismo é uma invenção da burguesia adoptada e relan­çada pelos revisionistas; o ‘stalinismo’ seria apenas marxismo-leninismo.

Que lhes faça bom proveito. É o mesmo que condenarem-se à esterilidade. Mas num aspecto têm razão: as correcções a Staline dão sistematicamente passagem a raciocínios oportunistas e ao espírito de colaboração de classes (Mao é um caso clássico) e o anti-stalinismo conti­nua a ser uma fonte do reaccionarismo mais boçal. Uma crítica pela esquerda a Staline não é para todos. E isto já nos diz alguma coisa sobre o lugar que ocupou na história do movimento operário, pri­meiro, e do movimento burguês anti-imperialista, depois.

40. “Staline acreditava estar a fortalecer a ditadura do proletariado, julgava sinceramente seguir o caminho de Lenine, adequando-o a condições novas; nunca pensou em renegar o leninismo”, etc. É um tipo de argumento que devemos pôr de lado porque só confunde.

As convicções subjectivas dos dirigen­tes políticos não servem de critério para aferir o seu papel na luta de classes. O que é objectivo é que Staline, ao procurar ser fiel ao leninismo numa situação nova, acti­vou a consolidação das novas relações sociais geradas pelo capitalismo de Estado. Como representante duma nova classe exploradora — duma classe cuja existência era oculta pela função de ‘van­guarda do proletariado revolucionário’ — não podia aperceber-se da natureza social do seu poder. Nós é que já não temos desculpa para continuar a envolvê-lo em véus justificadores.

41. A embrulhada posição chinesa sobre ‘os erros de Staline’ não assentava em quaisquer princípios. Pretendia avalizar Staline como marxista e dirigente do pro­letariado revolucionário, sabendo-se que ele liderou o processo em que a sociedade soviética mudou de cor.

Não se pode apreciar a ideologia e a política de Staline como um corpo invariá­vel; o Staline do começo dos anos 20 é um chefe revolucionário e um leninista de mérito; o Staline dos anos 30 e 40 já repre­senta a nova classe burguesa emergente na URSS e já não pode raciocinar em termos marxistas porque funda o seu poder sobre a opressão e exploração do proletariado.

Staline não cometeu erros; fez a transi­ção de chefe do proletariado para chefe da burguesia de Estado, do comunismo para o revisionismo. Os seus chamados erros foram a política necessária da instauração do capitalismo de Estado na URSS.

42. Veja-se por exemplo as Questões do leninismo de Staline, que formaram o pen­samento de gerações de comunistas. Rene­gadas pelos revisionistas, que precisam de pedir desculpa aos sucessores de Bukarine, Zinoviev, Trotski, elas continuam a ser defendidas pela corrente ML como uma obra clássica no combate ao oportunismo.

Para nós, desde logo, é inaceitável que uma obra percorrida pela atmosfera de coacção já imperante no partido possa em caso nenhum ser uma escola de marxismo. Isto deve ser dito, porque durante muito tempo esse género de polémica com adver­sários amordaçados foi tido como modelo do ‘marxismo-leninismo’.

Mas o mais significativo é a sua ten­dência para absolutizar e simplificar as noções de Lenine. Staline tinha um fraco pelos esquemas nítidos de estratégia e de táctica, que são, de resto, a parte mais fraca dos seus ensaios (a etapa da revolu­ção, a mobilização das reservas, a direcção do golpe principal…).

Essa visão da luta política como uma sucessão de campanhas militares e a crença de que, em última análise, a luta revolucionária se resume a uma questão de táctica (porque a teoria já nos foi legada pelos clássicos…) definem Staline como um chefe burguês, o primeiro que iria fun­dar a sua acção no marxismo-ieninismo…

43. O mais revelador em Staline é talvez a sua nova concepção do Partido, exposta nas Questões do leninismo: a unidade de acção terá que ser “completa e absoluta”; o fraccionismo, banido pelo X Congresso, nunca mais pode ser admitido; os oportu­nistas não têm de ser vencidos pela luta ideológica (essa uma ideia “podre”) mas expulsos.

Estão aqui retratados os tempos novos que faziam ascender Staline; os tempos em que os comunistas se encontravam com a responsabilidade, não de dirigir a luta revolucionária das massas, mas de fazer a revolução, e em que o partido ‘comunista’ sofria uma mudança de quali­dade, passando a uma espécie de estado-maior militar.

 O social-imperialismo

44. Começando pela tese de que o revi­sionismo era fruto da infiltração de opor­tunistas na direcção do PCUS, o PC chinês e o PTA em breve concluíram que o problema era muito mais grave: a ruptura era irreparável, a URSS um Estado capi­talista e o PCUS um partido burguês, “de tipo fascista”.

Mas o radicalismo desta segunda tese suscitava tantos problemas como o ‘refor­mismo’ da primeira. A sociedade soviética não parecia enquadrar-se nem na catego­ria duma ditadura do proletariado nem da duma ditadura da burguesia.

Assim, depois de ter tentado, em vão, demonstrar que a apropriação privada e o lucro privado çaracterizavam a economia da União Soviética, o PC da China e alguns dos seus seguidores puseram em curso a teoria do capitalismo de Estado como um regime em que a classe burguesa exercia a apropriação colectivamente e o capitalismo entrara numa etapa superior, funcionando sem concorrência e sem mer­cado. Disse-se que Marx e Engels tinham admitido este tipo de capitalismo estatal centralizado. E deduziu-se que ele era um inimigo mais temível da revolução do que o capitalismo clássico, por assentar na planificação e na fusão do poder económico, político e financeiro.

45. A experiência histórica demonstrou o infundado desta hipótese. O capitalismo de Estado (na URSS como na China, Hungria, Albânia, Cuba, Vietname, etc.) revela-se como uma formação transitória que existe apenas enquanto a sociedade percorre o caminho da ditadura do proletariado abortada até à restauração plena da ditadura da burguesia. Torna-se claro que as originalidades do regime soviético, que pareciam excluí-lo tanto do capita­lismo como do socialismo, eram apenas a lenta formação da nova classe capitalista da URSS, que agora entra na fase final da gestação.

A vida demonstra que as leis marxistas do capital continuam a vigorar para além das aparentes excepções. A revisão maoísta do marxismo estava errada. O capitalismo de Estado não é um terceiro regime; é a ponte entre os dois únicos regimes do nosso tempo. Não é uma variante; é um período de transição.

46. Donde vinha a aparência de força do capitalismo de Estado? Regime de transi­ção, frágil e instável, ele defendia a sua identidade envolvendo-se na couraça do monolitismo que lhe dava uma aparência ilusória de estabilidade, mas que só teve como resultado o amadurecimento subter­râneo dos conflitos de classe que agora explodem por todos os lados.

Com a cegueira de todas as classes exploradoras, a burguesia burocrática de Estado, embora condenada a desaparecer uma vez cumprida a sua missão de liquida­tária da revolução falida, defende a sua existência. A sua natureza social obriga-a a travar uma luta permanente um duas frentes, contra o proletariado, que empurra sempre mais para baixo, para o seu lugar de fornecedor de mais-valia, e contra a burguesia ascendente, em que vê uma ameaça mortal à sua existência, mas pela qual vai sendo corroída, penetrada e assimilada, à medida que as relações capi­talistas ocupam o lugar que lhes é cedido pela falência da economia capitalista estatizada.

47, Por ter tardado a compreender o carácter transitório do capitalismo de Fstado e a sua marcha em direcção ao capitalismo puro e simples, a corrente ML incapacitou-se para o combater.

A importância desta questão não é meramente teórica. Ela teve um alcance político arrasador para a corrente ML, na medida em que a levou a dividir entre dois inimigos principais o fogo que devia conti­nuar a ser concentrado no sistema capita­lista. A luta dos comunistas contra o capitalismo de Estado, em vez de ser con­duzida como uma parte da luta geral e invariável contra a burguesia, tornou-se um derivativo, uma segunda frente.

A chamada luta contra o revisionismo, em que a corrente ML esteve permanentemente envolvida, nunca obteve vitórias significativas junto do movimento operá­rio porque aparecia aos olhos dos traba­lhadores como ambígua, como uma diversão na luta contra o capitalismo.

E o pior é que o movimento marxista-leninista cometeu graves erros políticos, apoiando objectivamente em muitas cir­cunstâncias a pressão imperialista para acelerar a restauração burguesa, sob a bandeira da luta contra o totalitarismo, pelos ‘direitos humanos’, pelo apoio ao Solidarnosc, etc.

48. A tese dum capitalismo diferente con­duziu à tese dum imperialismo também fora de série, que não assentava em grupos financeiros, nem na exportação de capitais, mas que era, apesar disso, tão expansionista e agressivo como o imperialismo americano. A denominação de ‘social-imperialismo’, recolhida em Lenine (que a usara numa acepção rnuito diferente) pre­tendeu simultaneamente fazer crer que se tinham em conta as originalidades deste imperialismo e que se tratava duma ‘apli­cação criadora’ do leninismo.

Deste modo, depois de ter revisto a noção marxista de capitalismo, a corrente ML teve também que rever a noção leninista de imperialismo. Os resultados polí­ticos foram ainda mais desastrosos do que no primeiro caso: os ML seguidores do maoísmo fizeram coro com o imperialismo em inúmeras questões internacionais e com isto liquidaram-se como corrente revolucionária. Não podemos progredir sem darmos o balanço, que até hoje evitámos, ao que foi o alinhamento internacional da corrente ML.

É claro que havia quem sentisse o perigo de cair na situação de reserva do imperialismo. Foi o que levou o PTA à versão mais cautelosa e mitigada dos “dois imperialismos iguais”. Mas esta precaução centrista inseria-se na mesma lógica deses­perada: se não se atacasse o regime sovié­tico como imperialista e fascista, abriam-se as portas à conciliação com ele.

49. Este dilema só parecia insolúvel por­que não se queria admitir que um capita­lismo embrionário deveria dar lugar, num país militares economicamente poderoso como a URSS, a um imperialismo tam­bém embrionário, mas sem nenhumas condições para competir com as reais potências imperialistas.

As ambições expansionistas e hegemó­nicas que marcaram a política externa soviética sob a direcção Brejnev nos anos 60-70, pretendendo enfrentar os EUA taco-a-taco, esgotaram os recursos do regime e confirmaram a impotência total das amplas alianças de ‘forças da paz e da democracia’ para deter o imperialismo. Nenhuma outra força além da revolução proletária poderá destruir o imperialismo.

50. Com a nova etapa de integração plena dos regimes de capitalismo de Estado no mercado capitalista mundial entram em bancarrota as correntes que nas últimas décadas falavam em nome do marxismo. Revisionistas, stalinistas, maoístas, trotskistas debatem-se em con­tradições insolúveis à medida que as suas teorias caem pela base. E, embora o pro­cesso da sua decomposição se arraste pro­vavelmente por vários anos, é inevitável.

Cabe-nos acelerar essa decomposição, alargando o espaço da crítica marxista-leninista a essas correntes. Que os revisio­nistas se vejam hoje obrigados a aplaudir a visita de Bush à Polónia, onde vai investir capitais para a reconstituição do sector privado (e lamentem apenas que o investi­mento não seja mais generoso…); que os stalinistas façam o papel de múmias, recu­sando tomar conhecimento da transfor­mação burguesa da URSS nos anos 30 para não abalar a sua idolatria de Staline; que os maoístas vejam as suas revoluções ‘socialistas’ camponesas afirmar-se como revoluções burguesas; que os trotskistas apoiem com alvoroço cada avanço da libe­ralização burguesa no Leste como um pro­gresso da ‘democracia socialista’ e caiam no ridículo ao saudar os movimentos democrático-burgueses, que aceleram a restauração capitalista, como ‘revoluções políticas’ a caminho do socialismo — tudo isto deve ser posto por nós em evidência para mostrar a falência destas correntes.

O ciclo

51. Com todo o seu cortejo de desculpas, a corrente ML tenta fugir a esta simples verdade: a sucessão e a interconexão evi­dente dos desastres na URSS, China, Europa de Leste, Vietname, etc., não se explica por erros, nem por conjunturas desfavoráveis, nem por traições, nem por azares; indica a acção duma lei do movi­mento histórico.

Toda uma série de revoluções proletá­rias em países atrasados conseguiram impor a sua existência face aos assaltos do imperialismo mas falharam na tentativa de passar ao socialismo e foram reabsorvi­das através duma arrastada agonia em capitalismo de Estado. Se observarmos em acelerado o filme dos acontecimentos que têm passado ao retardador diante dos nossos olhos nas últimas décadas, o sen­tido do movimento torna-se perfeitamente evidente.

52. As condições em que se malograram as revoluções proletárias deste século são variáveis mas inserem-se numa condição geral: o proletariado de países que entraram atrasados na passagem ao capitalismo consegue explorar em seu proveito, devido à sua organização superior, a revo­lução camponesa para se elevar ao poder; contudo, a ausência de condições econó­micas para o socialismo e o carácter objectivamente burguês da revolução obrigam-no a deitar mão ao capitalismo de Estado e, neste processo, a transferir o controle do poder para uma burocracia que entrega os restos da revolução à burguesia. Assim, desde 1917, abriu-se, espraiou-se e por fim encerrou-se um ciclo da revolução proletária mundial.

53. “Mas admitir o fim dum ciclo não é dar armas à propaganda do imperialismo sobre o fim da revolução?”, perguntam angustiadas as boas almas. Pelo contrário. Reconhecer o fim dum ciclo da revolução é abrir os olhos para os sinais do novo ciclo que se prepara e cujas características devemos apressar-nos a compreender.

E claro que neste vazio entre o ciclo que terminou e o que se esboça há lugar para uma grande dissolução do pensa­mento revolucionário, para uma enorme expansão da ideologia reaccionária, que decreta a “morte dos mitos igualitários” e se lança à redescoberta dos valores eternos da Revolução Francesa. A massa, essa, vai à deriva das breves explosões de revolta e das longas resignações.

Mas é precisamente agora que os revo­lucionários devem aproveitar para fazer o balanço, o mais exacto possível, do que deve ser rejeitado e do que continua válido na experiência que findou.

54. Que modelo de revolução foi esse que se esgotou? É preciso dizê-lo sem rodeios: foi o modelo da aliança operário-camponesa. Durante 50 anos, a condução dum campesinato gigante por um proletariado pigmeu tornou-se de tal forma a lei dos países onde havia revoluções chefia­das pelos comunistas que perdemos a noção do que havia de anormal e de con­tingente nesta combinação.

O que se passou na União Soviética foi que a revolução operária pôde triunfar porque soube arrastar atrás de si, armar, organizar, uma revolução camponesa antifeudal. A revolução operária, apon­tada para o socialismo, pondo ao seu serviço a revolução camponesa apontada para o capitalismo — foi esta a singulari­dade de 1917, própria desta época em que as revoluções burguesas retardatárias começam a ser atropeladas pelas primei­ras revoluções proletárias.

Na China, no Vietnam, etc., a combi­nação ainda foi mais caprichosa, porque o proletariado, para ganhar a hegemonia na tempestade revolucionária que se desenca­deava, teve que assumir não só as reivindi­cações das massas camponesas mas as reivindicações nacionalistas de toda a pequena burguesia, dando à revolução uma envergadura social ainda mais vasta mas também um cunho mais híbrido.

55. O esquema funciona enquanto se trata da luta pelo poder e no período ime­diato, de reformas democráticas. Mas a desproporção entre a força do proleta­riado e a das massas pequeno-burguesas é tal que em breve a revolução operária é submergida pela revolução burguesa que pretendia rebocar como sua reserva. A revolução proletária começa por trepar às costas da revolução burguesa, mas esta desforra-se e acaba por levar a melhor.

E isto porque, ao satisfazer as reivindicações pequeno-burguesas dá-se fôlego à sua luta contra o socialismo. Não é pelo facto de ter recebido a terra, a liberdade, uma vida melhor, da mão do proletariado que a pequena burguesia pode mudar de natureza. Se alguém contava com o efeito da persuasão e dos valores morais, teve que se desenganar.

Naturalmente, a única hipótese revolu­cionária viável era essa mesma. Mas o que interessa registar é que a ambição de con­seguir, por um movimento ininterrupto, fazer engrenar a revolução socialista na revolução democrática malogrou-se em todos os casos, por insuficiência da força do proletariado para remodelar, pela sua iniciativa total (política, económica, ideo­lógica), as massas pequeno-burguesas arrastando-as a caminho do socialismo.

56. Em todos os casos, chega o momento em que a conjunção de interesses entre operários e camponeses cessa de se verifi­car. A revolução divide-se em dois ramos divergentes, embora ainda não antagóni­cos: um operário, o outro pequeno-burguês. E embora o movimento operário disponha da superioridade de organização política e da nacionalização da grande indústria, ele é economicamente mais fraco do que o oceano da pequena econo­mia agrícola, comercial, artesanal. Acresce que a pressão do imperialismo circun­dante ajuda por todos os meios a burgue­sia a sufocar a revolução proletária.

Nesta luta desigual, estão criadas todas as condições para que o partido ope­rário, que subiu ao poder graças à revolu­ção, procure compensar a desvantagem económica com a vantagem política reforçando o aparelho de Estado, segregando uma enorme burocracia como seu agente, representante e substituto nas tarefas de administração e coerção.

A partir daí, estão reunidas as condi­ções para este aparelho burocrático gover­nante ser penetrado, subornado, remode­lado, assalariado pela economia capitalista, que se reproduz imparavelmente, primeiro sob o disfarce estatal ‘socialista’, depois cada vez mais às claras.

57. Podia ter sido salva a revolução russa com uma outra política por parte do par­tido? Não podia, porque a ditadura do proletariado na Rússia, cercada, atacada e desorganizada pelo imperialismo, tolhida internamente pela massa imensa da pequena produção, não dispunha de for­ças próprias para romper, estava reduzida a ganhar tempo e a agonizar se não sur­gisse uma outra revolução em seu socorro.

Quer isto dizer que somos determinis­tas, que negamos a possibilidade de opção? Não; havia opções mas o socia­lismo estava fora das opções possíveis nesse momento. Durante as lutas internas de 1923-1928, a alternativa jogava-se entre reforçar o capitalismo de Estado ou resta­belecer a economia de mercado, como as duas únicas hipóteses viáveis de ‘edifica­ção do socialismo’. Não houve aí lugar para qualquer plataforma comunista (ainda que evidentemente houvesse mui­tos alertas lúcidos no que diziam os diver­sos contendores), porque não existiam premissas para avançar para o socialismo. A ausência de uma linha comunista nas facções em luta serve de contraprova histórica a este facto — a revolução russa estava condenada.

58, Até hoje, as pretensas vias novas para o socialismo (chinesa, vietnamita, cuba­na…) não fizeram mais do que baralhar o dilema que a revolução russa revelara em toda a nitidez: se o proletariado não con­segue exercer a ditadura, como arrastar a pequena burguesia para o socialismo?

As ‘inovações criadoras’ de Mao sobre a edificação do socialismo — ditadura democrática popular, caminhar sobre as duas pernas, comunas populares, solução das contradições no seio do povo, revolu­ções culturais — foram em grande medida combinações eclécticas da linha stalinista com a linha bukarinista, porque não havia muito mais para intentar nessa questão.

O que o maoísmo trouxe de novo foi ter sabido tirar partido da energia dos camponeses pobres e dum sistema muito flexível de suborno da pequena burguesia e mesmo da burguesia nacional ‘patrió­tica’. O consenso social assim obtido (sobretudo porque o proletariado não se fazia notar) foi a fonte do breve esplendor da China Popular. Mas também, a reac­ção burguesa foi aí mais fulminante que na União Soviética, onde as forças vivas do capitalismo tinham sofrido golpes devas­tadores.

Quanto às inovações de Ho Chi Min, Castro, Guevara, ainda menos acrescen­tam à questão em jogo, que é simples­mente a da hegemonia (impossível) do proletariado.

59. Se dizemos que a revolução russa não podia triunfar porque era, como a Comuna de Paris, obra dum proletariado ‘lançado ao assalto ao céu’, dizem-nos que isto equivale a condenar a iniciativa do partido bolchevique na conquista do poder, a considerar que Lenine teria sido afinal ‘vanguardista’ e ‘blanquista’, como o acusava Kautski, etc.

É um ponto de vista também ele her­dado do stalinismo, esse de ver a revolu­ção como o produto da vontade dos revolucionários e não como uma força da natureza, uma vaga de massas que tem que se espraiar e onde o papel dos revolucioná­rios é essencial, sim, mas para procurar tirar o máximo partido das suas potencialidades, não para decidir se vai haver revolução ou não…

A revolução russa de 1917 foi o aconte­cimento mais avançado da história da humanidade, a condução dos aconteci­mentos por Lenine e pelo partido bolche­vique foi modelar, toda a história dos nossos dias é condicionada pelas suas con­quistas, as suas lições permanecem válidas — mas esta revolução estava historica­mente condenada à derrota.

Os comunistas da época não podiam sabê-lo. Sabiam que o seu dever de revolucionários era levar a revolução o mais longe possível, na esperança de que facto­res imponderáveis (uma resposta revolu­cionária da Alemanha, por exemplo) desencadeassem uma cadeia ininterrupta de revoluções.

Fim do texto publicado no Tribuna Comunista, boletim interno da Organização Comunista Política Operária, nº 15 de Julho de 1989 (inédito)

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