Novas lições da Revolução Russa (1)

Francisco Martins Rodrigues

Novas lições da Revolução Russa

(Elementos para uma plataforma comunista)

Primeira parte

Sair da corrente ML

1. O que nos falta para constituirmos uma corrente comunista internacional? Falta-nos fazer o enterro teórico do chamado “movimento ML”. Evidentemente. não temos que renegar a deslocação à esquerda que representou a luta anti- revisionista dos anos 60. Mas temos que pôr em causa o espírito de compromisso que presidiu a essa luta e a impediu de dar frutos.

Estamos na continuidade dum movi­mento que, em 25 anos, já fez três cisões — com o revisionismo soviético (1963), com o maoísmo (1978) e com o PTA em 1983. E embora não falte quem nos considere maníacos da cisão, a história destes anos demonstra o contrário: a timidez em tirar as conclusões das divergências e em levar a cisão corajosamente até ao fim, ampu­tando duma vez por todas as partes gan­grenadas da doutrina e da política que nos servia de guia.

2. Há um fio condutor nas três cisões que fizemos. A crítica sucessiva ao anti-stalinismo do XX Congresso, ao ‘Estado de todo o povo’ e à ‘linha geral da coexistência pacífica’ de Kruchov, depois à aliança das quatro classes e ao trimundismo de Mao, por fim ao stalinismo do PTA e à linha das frentes populares, alar­gou pouco a pouco os nossos horizontes, libertou-nos da monstruosa carapaça de preconceitos revisionistas incrustados no pensamento marxista ao longo dos anos e permitiu-nos caminhar ao reencontro do leninismo. Mas porque teve que haver estas fases? Porquê esta corrida de obstáculos ao longo de 25 anos, na qual se dispersou a maior parte do exército marxista-leninista nascente?

3. Vista à distância, a “grande luta de princípios” lançada pelo PC da China e pelo PTA aparece hoje como acanhada.

Quando um e outro falavam em “retorno ao leninismo, ao espírito da Revolução de Outubro e do bolchevismo, tinham em vista a sua própria tradução adaptada do bolchevismo: procuravam um ponto intermédio entre o bolchevismo e o revisionismo: por isso lhes chamamos centristas.

A aliança temporária da linha maoísta do PC da China e da linha stalinista do PTA, apoiando-se mutuamente contra a ameaça desencadeada pelo revisionismo soviético, não trouxe uma revolução teó­rica porque não visava a revolução; era uma batalha de retardamento, de conser­vação de posições adquiridas. Daí que o cortante da sua crítica se esgotasse depressa.

4. O travão que impediu o avanço teórico da corrente ML não se pode explicar por erros. Estava na base social dos regimes que promoviam a crítica.

O marxismo-leninismo da China e da Albânia estava inevitavelmente tingido de revisionismo devido à ordem social rei­nante nesses países. Os cortes chinês e albanês não podiam ir à raiz do fenómeno porque exprimiam a crítica a um capita­lismo de Estado feita por outro capita­lismo de Estado. Da degeneração burguesa e das suas causas só podiam ter a visão limitada que lhes era permitida pela sua própria degeneração iá em marcha.

Por esse motivo, os dois ramos que teimam em falar em nome da corrente ML – o ‘Movimento Comunista Internacio­nal’ stalinista pró-albanês e o ‘Movimento Revolucionário lnternacionalista’ maoísta – não passam de fósseis teóricos. Defen­dem plataformas que podiam ter uma apa­rência de lógica há 20 anos mas que hoje não se sustentam de pé.

5. Em princípio, caberia ao movimento comunista dos países capitalistas aperceber-se da doença que minava todo o ‘campo socialista’ e tomar nas suas mãos o debate sobre as origens do revisionismo. Em vez disso, a débil ala esquerda internacional surgida nos anos 60 abraçou sem espírito critico as plataformas de Mao e Hoxha para depois repudiar uma e outra, ao veri­ficar. pela experiência política, as suas contradições.

Essa miopia e seguidismo, que já se tinham manifestado perante o longo pro­cesso de degeneração da URSS. não se podem explicar só pela modéstia perante partidos forjados na luta revolucionária, ou só pelo desejo de apoiar os bastiões do socialismo. Elas revelam a fragilidade dos laços que unem os núcleos marxistas-leninistas aos interesses centrais do movi­mento operário e a sua pobreza teórica, que os levam a procurar uma tutela e urna legitimação externa, a coberto dos deveres do internacionalismo.              

6. Por isso mesmo, o passo que a partir de 1980 deram algumas escassas forças da corrente ML agonizante, ao entrar no que até aí fora terreno proibido e ao submeter à crítica aspectos da política da IC e da URSS na época de Staline, sendo por isso excomungadas pelo PTA, teve um valor qualitativo novo. Já não foi mais uma crítica mas o começo do fecho de todo um ciclo de críticas. Ao passar o eixo do debate da traição revisionista para as ori­gens sociais do revisionismo, ao pôr em discussão todo o passado do movimento comunista desde a revolução russa, não iniciámos uma ala esquerda na corrente ML; saímos dessa corrente, que se for­mara precisamente com o objectivo de jus­tificar o passado.

7. A nossa fraqueza está no facto de não termos completado o corte ideológico encetado com a crítica ao maoísmo, ao 7.° Congresso da 1C e a alguns aspectos da política de Staline. Insistir hoje em fazer críticas construtivas ao PTA, em apelar à consciência dos partidos ML e em salvar uma parte da bagagem dos últimos 25 anos é na prática bloquear o exame global e o corte que se impõem. É preciso repor em discussão todas as formulações e pontos de vista dos últimos 25 anos e não apenas fazer-lhes correcções parciais. Não se trata de pôr remendos mas de fazer obra nova.

Sair para fora das fronteiras centristas da corrente ML, cortar o cordão umbilical que ainda nos liga a ela, reconhecer o seu esgotamento histórico, elaborar uma pla­taforma comunista coerente, afirmar-se à luz do dia como uma nova corrente comu­nista — eis o que falta para passarmos a ter existência própria. É o receio a dar esse passo, a vertigem de uma queda no vazio, que nos tira clareza e capacidade ofensiva.

8. Quando, como, porquê degenerou o poder proletário revolucionário em novos regimes burgueses? Retomar a crítica ao revisionismo moderno no ponto em que foi deixada pelo maoísmo e pelo ‘enverismo’, ampliando-a a uma crítica à sua base social, ou seja, a uma crítica geral ao regime de capitalismo de Estado — tal é, quanto a nós, a tarefa central.

Diz-se que o essencial para os comu­nistas é compreender os novos desenvolvi­mentos do imperialismo, as mutações que ele produz nas classes, as novas tarefas da revolução socialista. Mas a chave para abordar esses fenómenos novos está no balanço às experiências do movimento operário revolucionário do século XX.

Essas experiências parecem ter obede­cido a uma lei: a degeneração do poder revolucionário dos operários e camponeses no poder reaccionário duma burguesia burocrática de Estado, cujo papel é entre­gar os restos triturados da revolução nas mãos do capital internacional.

É a explicação deste fenómeno que está hoje no centro da teoria marxista da revolução e da ditadura do proletariado. Não devemos recear concentrar esforços t neste ponto: não é uma questão de história, mas de actualidade.

9. Actualmente, o receio a enfrentar a derrota incontestável da revolução proletária no nosso século é o maior entrave à reorganização da corrente comunista. E são suicidas as ilusões de que se poderia suprir o vazio teórico a que chegámos pela “ligação às lutas diárias da classe operá­ria”. O que está no centro dos interesses operários não são novas tácticas sindicais ou novas formas de luta contra o desem­prego; é saber se existe afinal um caminho para a revolução e a ditadura do proleta­riado e qual é ele. Só sobre o alicerce dum programa comunista renovado pode construir-se uma estratégia, uma táctica, um partido.

Não defendemos a formação de grupos teóricos. Cada destacamento comunista só sobreviverá na medida em que fizer parte da luta diária da classe operária. Mas querer construir uma política comunista a partir de noções espontaneistas da “ligação às massas” é afundar-se no economicismo e no reformismo. 

10. A definição dos contornos da nova corrente comunista só pode fazer-se em debate internacional, preservando a inde­pendência de cada agrupamento mas criando mecanismos de discussão (por exemplo, uma revista ou um boletim de debate) a que tenham acesso todos os que têm de comum o corte pela esquerda com o “movimento ML”. Se cada grupo conti­nuar entregue a si próprio, corre-se o risco de que a cisão embrionária de esquerda iniciada em 1980 se perca no pântano do enquistamento ou de ‘inovações’ revisio­nistas.

Naturalmente, não podemos imitar os grupos que pomposamente se declaram “correntes internacionais” e começam por elaborar plataformas e programas fanta­sistas. É preciso estudo associado a traba­lho prático. Mas é ilusório julgar que temos muito tempo à nossa frente. A luta de classes, que não pára, desintegra sem cerimónia as forças políticas que se dei­xam ir à deriva. Se não elaborarmos uma plataforma comunista consistente e não traçarmos as nossas fronteiras, sucumbire­mos sob o assalto das forças que nos rodeiam. Ou nos definimos ou seremos desagregados.

O poder soviético

11. A tese maoísta de que o XX con­gresso mudou a ditadura do proletariado em ditadura da burguesia e o partido comunista em partido fascista é insusten­tável. Uma contra-revolução não resulta da aprovação de teses, por muito revisionistas que sejam. Pelo contrário, as teses revisionistas indicam uma contra-revolução muito anterior. A guinada política à direita após a morte de Staline é uma fase nova num processo social que vinha de trás.

Desde quando? A corrente ML foi incapaz de responder a esta questão. Sentindo-se obrigada a defender Staline contra os ataques direitistas de Kruchov, deu como assente que aquele, com mais ou menos erros, se identificara ao longo da sua vida com a ‘linha proletária’. Logo, a ditadura do proletariado fora preservada até 1953.

Mas julgar da existência ou inexistên­cia da ditadura do proletariado pela maior ou menor ortodoxia do partido é brincar ao marxismo. Deixou-se de lado aquilo que devia ser o critério aferidor da análise — que fora feito do poder soviético?  Este esquecimento não aconteceu por acaso: a questão dos sovietes como pilares da ditadura do proletariado tornara-se há muito uma expressão convencional, um esquerdismo a esquecer. Nesse assunto, mais do que em qualquer outro, havia um abismo entre a teoria e a prática do movimento comunista.

12. Todos sabem que, ao longo dos anos 20, os sovietes perderam o poder real, que os seus membros deixaram de ser livre­mente eleitos pelos trabalhadores e que se tornaram meros órgãos administrativos. O poder passou a ser exercido directamente pelo Partido Bolchevique em representação do proletariado e do campesinato, embora mantendo a ficção do poder dos sovietes.

A fundamentação teórica para isto era que ao Partido Comunista, órgão supremo da ditadura do proletariado, competia pôr em movimento as ‘alavancas’ e ‘correias de transmissão’ dos sovietes, sindicatos, etc. “A ditadura do proletariado — escrevia  Staline em 1926 — consiste nas directivas do Partido, mais o cumprimento destas directivas pelas organizações de massas do proletariado, mais a sua execução prática pela população!” O partido comunista passara de vanguarda política num sis­tema complexo de órgãos de poder a detentor exclusivo do poder. A ditadura de classe do proletariado esgotava-se na ditadura do partido; em breve, a ditadura do partido iria resumir-se à ditadura do núcleo dirigente.

13. O argumento era a necessidade de defesa do regime. Mas poucos anos antes, durante o caos da guerra civil, o regime mantivera os sovietes em funcionamento e uma grande liberdade de discussão, e não se afundara por isso.

Lenine sabia que as restrições da democracia proletária podem ser inevitá­veis numa situação de emergência, mas, se forem prolongadas por um largo período, acarretarão a dissolução da ditadura do proletariado.

E isto porque a ditadura do proletariado não consente a mesma margem de delegação de poderes que há na ditadura da burguesia. Tem que ser “mil vezes mais democrática do que a mais democrática república burguesa”. A razão é simples: a ditadura da burguesia assenta no movimento automático de produção e reprodu­ção do capital; a ditadura do proletariado existe apenas na medida em que as massas produtoras forem capazes de eliminar dia­riamente, em larga escala, os mecanismos capitalistas e os vestígios da ordem bur­guesa e da ideologia que lhe corresponde.

A substituição dos sovietes pelo par­tido em meados dos anos 20 era pois já um sinal da agonia da ditadura do proletariado.

14. Naturalmente, a edificação da demo­cracia soviética não tinha nada a ver, nem com a utopia anarquista da livre iniciativa dos conselhos, do basismo, da dissolução do Estado, nem com a reivindicação de mencheviques e SR por um governo de coligação e um parlamento. A acusação de que os bolcheviques “autoritários” mata­ram os sovietes e a democracia ao apossar-se do poder em Outubro é a resistência cega da pequena burguesia à nova ordem social proletária.

Para exercer o poder, os sovietes tinham que aplicar uma política e nomear um governo, optando maioritariamente por um dos vários programas partidários. Foi o que aconteceu quando, no seu II congresso, deram a maioria aos bolchevi­ques. Se o Partido Bolchevique, vitorioso numa revolução em que contou com o apoio maioritário das massas oprimidas, a seguir abdicasse do seu lugar hegemónico dentro dos sovietes como exigiam os democratas pequeno-burgueses e os anar­quistas, estaria a trair a revolução que o elevou ao poder.

15. Ao terminar o estado de sítio cau­sado pela invasão estrangeira, pela guerra civil, pela fome, poderia supor-se que iria começar um grande florescimento dos sovietes, uma reactivação dos partidos soviéticos (todos os que reconheciam e acatavam o poder revolucionário) e o alar­gamento da vida política no partido comu­nista e no país.

Na prática, as coisas não funcionaram assim: o caos da guerra desmantelara o núcleo proletário do poder, já de si débil para tarefa tão imensa. Tinham desapare­cido as condições de 1917/1918 para uma ditadura democrática dos operários, cam­poneses e soldados, sob a direcção da vanguarda operária comunista. Os sovietes tendiam a desintegrar-se sob a pressão antagónica do proletariado e da pequena burguesia (“sovietes sem bolcheviques”, tinham exigido os revoltosos de Cronstadt), o regime dos sovietes não se aguen­tava de pé.

E à medida que as cedências forçosas da NEP iam abrindo as portas à pequena burguesia, menores eram as condições para os comunistas continuarem a dispu­tar e a ganhar a hegemonia dentro dos sovietes, numa luta política permanente e aberta. A continuidade do regime não podia ser assegurada pelo normal funcio­namento da democracia soviética. Ou o partido concentrava todo o poder nas suas mãos ou a invasão pequeno-burguesa pre­pararia o terreno para uma contra- revolução.

16. Quer isto dizer que o poder dos sovie­tes era desde o começo uma utopia, como pretendem as escolas burguesas? Não. Ele tornou-se inviável depois de ser estrangu­lado pela intervenção imperialista.

A burguesia imperialista ainda hoje procura fazer esquecer ou minimizar o que foi a agressão militar de 14 Estados contra o poder soviético. Nenhum meio militar, económico, político, ideológico, foi pou­pado com vista a “asfixiar a criança enquanto está no berço”, como dizia Churchill. A revolução russa foi esmagada implacavelmente nos três anos de guerra civil e de invasão estrangeira. O que veio depois foram as consequências.

A burguesia internacional, é certo, não teve força para pôr no poder um governo contra-revolucionário. Mas dizimou a classe operária, desmantelou a indústria, desorganizou a economia, tornou obriga­tório o reforço draconiano do poder cen­tral do Estado — e assim matou o poder dos sovietes e com ele a própria revolução proletária.

Por isso, as divergências posteriores  entre Staline, Trotski, Bukarine eram insolúveis: eles discutiam o futuro duma criança morta.    

Primeira parte do texto publicado no Tribuna Comunista, boletim interno da Organização Comunista Política Operária, nº 15 de Julho de 1989 (inédito)

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