Urgente campanha pelo “não” ao referendo

Francisco Martins Rodrigues

A aproximação do referendo à Constituição Europeia põe na ordem do dia o lançamento de uma campanha de agitação capaz de levar o “não” à vitória. Com o PS, o presidente da República e o conjunto das personalidades “democráticas” a fazerem coro com a direita pelos “valores europeus”, a campanha pelo “não” só terá à sua frente o PCP, o BE e a CGTP. A questão está em saber se será uma campanha só para “marcar posição” ou se terá como meta real a rejeição do tratado. E aqui há questões políticas a discutir.

VOLTAR ATRÁS?

O êxito de uma campanha pelo “não” depende da clareza com que se explique à massa da população trabalhadora a necessidade de rejei­tar o projecto e as vantagens que poderá obter dessa rejeição. A tendên­cia de há longa data enraizada nas forças da esquerda institucional para procurar a linha da maior abrangência, acenar com utopias e empastar a linguagem para não assustar os sectores intermédios e vacilantes só pode conduzir à derrota.

E é mais que certo que poucos se deixarão convencer pela campanha do PCP quando, a rematar uma enxurrada de críticas, aliás bem merecidas, à UE, propõe que esta se transforme numa “associação dos Estados euro­peus livres e iguais”, conservando a soberania nacional, unidos na busca do progresso e na defesa da paz, uma “união livre das nações soberanas da Europa”. Este cenário lírico é também traçado por outros partidos europeus, como o PC da Grécia quando defende “a çrjação de um outro pólo, o pólo da cooperação de países e de governos que, desligados da UE, construirão uma cooperação totalmente diferente, em proveito dos povos”. Ou como o PCPE (Partido Comunista dos Povos de Espanha) quando aposta numa “Europa alternativa” “baseada na livre associação de nações e Estados, numa confederação de povos livres e soberanos”, em que “a política económica, monetária e social, de defesa, segurança e relações externas seja da competência dos Estados membros”.

Acenar aos povos europeus com o regresso aos Estados nacionais burgueses, (mais ou menos) soberanos, compartimentados, com o seu espaço económico próprio – àquilo que foi ultrapassado pela própria mar­cha da vida – é tratá-los como débeis mentais. A UE não é uma invenção maldosa de um punhado de reaccionários, é uma exigência vital do capita­lismo europeu para sobreviver nesta nova etapa do seu crescimento. Os que tanto falam no marxismo deviam saber que os tremendos saltos tecno­lógicos e económicos das últimas décadas têm que se traduzir em mudan­ças profundas ao nível político: mercados mais vastos exigem Estados de dimensão continental. A Europa mosaico de pequenos Estados rivais ficou para trás. Como dizia Marx, “a força expansiva do capital é a artilharia pesada que derruba todas as muralhas da China”. Essas mudanças podem não ser imediatas, mas são imparáveis. E é nesta nova realidade do capita­lismo transnacional que temos que dar luta à burguesia, não virados nostal­gicamente para o passado.

Os que fixam a atenção só nas críticas, fracassos e disputas após cada reunião da UE não notam que o projecto vai avançando, passo a passo, e que os avanços são sem retomo. Os condutores do processo têm evitado deliberadamente a discussão sobre o objectivo final (que assusta os povos e os pequenos Estados); concentram os esforços num degrau de cada vez, até que a conclusão surja por si: o império Europa.

Naturalmente, permanece incerto o desenlace do projecto unificador conduzido pelo bloco Alemanha-França. São imensos os obstáculos cria­dos ao plano gigantesco de absorção de três dezenas de Estados nacionais numa única entidade imperial; é cedo para sabermos se os promotores conseguirão superar as suas próprias contradições, agravadas pela acção de sapa do império rival. Pode acontecer que as dificuldades de integração levem o eixo Alemanha-França a avançar, atrelando os restantes com um estatuto diferente. Porém, seja qual for a solução política encontrada e o tempo que ela demore, uma coisa é já hoje adquirida: o novo mercado europeu aberto pelas transnacionais é incompatível com o parcelamento e as barreiras da velha Europa.

“DISPUTAR A HEGEMONIA”

Uma outra posição, aparentemente mais aberta à realidade, é a que defendem o Bloco de Esquerda e correntes afins, que assumem, contra o passadismo do PCP, uma postura pretensamente audaciosa: estar na UE para corrigir os seus rumos imperiais, criando dentro das suas instituições uma oposição activa e reformadora, capaz de “refundar” a Europa, tomar realidade o “modelo social europeu”, fazer respeitar os direitos democrá­ticos, a liberdade de circulação dos imigrantes, promover a paz mundial e a ajuda ao Terceiro Mundo…

Esta ideia de que o mais inteligente por parte da esquerda será partici­par no processo, para “valorizar os aspectos positivos e minimizar os nega­tivos”, é bem expressa pelo PC de Espanha quando defende que a esquerda deve entrar nas instituições europeias para, lá dentro, “disputar a hegemo­nia do processo comunitário às forças conservadoras e ao grande capital transnacional”, a fim de que a UE desempenhe “um papel internacional como factor de paz e de solidariedade”.

Mas a mais pequena apreciação das forças em presença mostra o absurdo desta pretensão. Como podem as forças da esquerda “moderna”, privadas de um alvo estratégico, acantonadas numa oposição marginal em cada um dos países, tornar-se capazes de “disputar a hegemonia ao grande capital” unido à escala da Europa? A união destes partidos, agora a ser negociada, vai multiplicar-lhes as forças e a capacidade de mobili­zação, ou vai justamente agravar tudo o que neles já há de vacilação e de impotência reformista?

Formular reivindicações sociais para a Europa sem as ligar explicita­mente à revolução, ao derrube da burguesia e do seu aparelho de Estado, é burlar os trabalhadores. Se já era absurdo querer melhorar o Estado burguês nacional por meio de reformas, agora, ao nível do império capita­lista europeu, esse projecto é simplesmente anedótico. A corrente que em Portugal é representada pelo BE apenas sonha em transferir para o espa­ço europeu a sua receita tradicional – tornar-se um contrapeso indispen­sável da social-democracia e por este meio aceder a uma pequena fatia do poder. E anuncia um único resultado prático: a formação de grandes partidos colaboracionistas europeus, a jogar o jogo institucional, a servir de válvula de escape à resistência das massas – justamente o que é neces­sário ao grande capital transnacional europeu para se consolidar no poder.

 DERROTAR A UE

Os horizontes oferecidos por estes críticos “progressistas” da UE – voltar para trás, ou melhorar a União – são igualmente utópicos. Não admira que os seus apelos suscitem tão pouca adesão. Numa ou noutra variante, eles propagandeiam a mesma submissão e colaboração de clas­ses que têm praticado à escala nacional – e isto contamina todas as suas denúncias.

A campanha pelo “não”, para ter alguma hipótese de ganhar as massas, deve falar claro: o regresso aos pequenos espaços nacionais é impossível, a correcção da UE por dentro, também – só nos resta abordar desde hoje a luta frontal para minar e desmantelar a máquina política e militar que está a ser montada pelas transnacionais.

Isto significa que a luta pelo fim do capitalismo, pelo socialismo, assu­me agora uma dimensão europeia – não apenas no terreno da solida­riedade mas no da actividade prática diária. Até hoje, por toda a Europa, os proletariados nacionais lutaram contra as suas próprias burguesias. A partir de agora, com o capitalismo a integrar-se num único bloco, a tarefa é fazer emergir um proletariado europeu unido, em luta contra as instituições da UE. A rejeição deste tratado iníquo, sobretudo se o “não” triunfar em vários países, pode ser um primeiro passo para o proletariado europeu sair da crise em que se debate, começar a configurar a sua identi­dade própria como força continental e animar um vasto movimento, à escala europeia, de oposição popular ao império Europa.

Vai decerto demorar a construirmos uma força proletária europeia com o mesmo grau de unificação que já leva a burguesia. Mas é esse o único caminho para a frente.

OS “PERIGOS” DA REJEIÇÃO

Sem alternativa ao que existe, a nossa esquerda reformista não se atreverá a empenhar-se a fundo na campanha pelo “não” ao referendo; já ficará contente com uma votação “honrosa” que lhe sirva de cartaz para as eleições internas que se seguirão. E isto porque é sensível à berraria da direita, com o papão de que, em caso de rejeição do tratado, “Portugal seja excluído da Europa”, ou que a “construção europeia” entre em crise. Embora não o confesse, acha que o tratado pode não ser bom mas é um mal menor…

Este é, além do mais, um receio inepto. Infelízmente para nós, não estaremos em posição, nos tempos mais próximos, de conseguir que o movimento popular, em Portugal ou em qualquer dos outros países mem­bros, force ao abandono do projecto imperial europeu; isso só se faria ao preço de uma revolução proletária, que, para nossa desgraça, não está no horizonte.

Mas uma campanha bem conduzida pelo “não” no referendo poderá mandar para o lixo esta Constituição, forçar os governantes a renegociar os seus tratados, despertar novas forças, ganhar tempo para a organização continental da luta do proletariado, e isso já seria muito importante.

Argumentam também certos sectores da “esquerda” (em voz baixa) que o crescimento da UE, mesmo “imperfeita”, será no fim de contas favorável para as forças democráticas, porque poderá servir de barreira à agressividade brutal do império ianque, ser um factor de paz, etc.

Para estes míopes incuráveis, a Europa, que produziu as duas guerras mundiais, o nazismo, o colonialismo e o neocolonialismo, estaria hoje “purificada” e transformada num factor de paz e progresso-justamente quando no seu interior crescem desmesuradamente as forças do capital! Não vêem o envolvimento da UE na criminosa guerra dos Balcãs, na agonia da Palestina às mãos do sionismo, na pilhagem do Iraque e do Afeganistão, nos golpes e contragolpes em países africanos, na corrida para dominar os mercados da América Latina. Não dão notícia das diligências para criar um Exército Europeu, um programa armamentista, uma central de vigi­lância.

Esquecem que a natureza do imperialismo é única; a reacção em toda a linha, as aventuras guerreiras, a barbárie, são o produto necessário dos centros capitalistas em luta para derrotar a resistência do proletaria­do e dos povos e para vencer os rivais. Como notou um dia Lenine, o imperialismo não é uma política, a que se possa opor em alternativa uma outra política mais moderada; o imperialismo é a própria maneira de ser do capital financeiro – quanto maiores os recursos e os interesses em jogo, mais exacerbados os apetites, mais feroz a concorrência, mais bár­baros os conflitos.

A luta contra a expansão guerreira dos EUA exige do movimento prole­tário europeu, não a colaborção com a sua própria burguesia, mas a luta contra ela. Só opondo-nos ao capitalismo e ao imperialismo em nossa casa reuniremos forças para atacar seriamente o imperialismo rival. Por isso, a única posição favorável para a luta anti-imperialista e anticapitalista é, em todas as circunstâncias, o enfraquecimento do gigan­te europeu. Lançar desde já uma campanha convicta pelo “não” ao refe­rendo é uma questão vital para a esquerda.        ■


Os bosses

Todas as grandes orientações da UE – o Mercado Único, o euro, os transportes europeus, o alargamento a Leste, o pro­cesso de Lisboa – têm tido a sua origem no clube da Mesa Redonda dos Industriais Europeus (ERT). Fundado em 1983, este clube reúne os patrões de cem das maiores empresas mun­diais. Cada associado paga uma quotização de 55.000 euros. “Tenho a impressão de que o nosso papel tem crescido – obser­va modestamente Daniel Janssen, PDG da multinacional Solvay – agora é a Comissão Europeia que nos vem consultar”.


E do lado das centrais sindicais?

Em Julho, o comité dirigente da CES, a Confederação Euro­peia de Sindicatos, comprometeu-se a “apoiar a Constituição Europeia, como ponto de partida para novos progressos em direc­ção a valores sociais mais fortes da União Europeia”. O que se­jam estes ‘Valores sociais mais fortes” pode perceber-se, saben­do que a supercentral admite a “necessidade da moderação dos salários” e não se opõe à “flexibilização”, desde que “negociada”.

Tão dependente de Bruxelas que mais parece uma engrena­gem do aparelho comunitário, a CES está a usar o seu poder de convicção (os fundos!) para levar as centrais sindicais de cada país a votarem “sim” no referendo. Para já, a direcção da CGT francesa parece estar ganha para a causa: “É inegável – disse em Julho o representante da central na CES – que o tratado constitu­cional representa um avanço real em relação aos tratados actuais”. Perante a comoção causada por estas palavras em certos sindi­catos que já se pronunciaram pelo “não”, a comissão executiva da CGT assegurou, em 9 de Setembro, que a atitude final ainda não está definida e que haverá um ‘Verdadeiro debate” sobre o assunto. Começa agora o trabalho subterrâneo de “convenci­mento” dos renitentes.


 

Política Operária nº 97, Novembro-Dezembro 2004

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