Acalmia enganosa

Francisco Martins Rodrigues

Fala-se de “desanuviamento internacionale “regresso à cooperação atlântic”. Na realidade, prossegue em ritmo febril o jogo das grandes potências, ocupando posições com vista a futuros confrontos.

As recentes tournées de Bush e de Condoleezza Rice deram lugar a declarações optimistas por toda a Europa: com a administração Bush a regressar ao “multilateralismo”, estariam criadas novas condições para a pacificação no Médio Oriente. A realidade é toda outra. Bush veio pres­sionar e engodar a Europa para o ajudar, mediante contra­partidas apetitosas, a gerir os “quebra-cabeças” do Iraque e da Palestina e a lançar as novas operações contra a Síria e o Irão.

Consolidada no poder, a equipa de Bush acha a situação propícia para prosseguir com o seu plano global. De facto, de uma forma ou de outra, os EUA conseguiram levar a cabo “eleições” no Afeganistão e no Iraque, obtiveram uma trégua na Palestina, e com este simulacro de normalização podem agora passar a outra etapa: a questão síria, sem descurar a cartada maior, o Irão.

As declarações provocadoras de Condoleezza contra a Coreia do Norte, a nova “revolução popular” teleguiada, desta vez no Quirguizistão, a nomeação dos falcões Wolfowitz e John Bolton, um para o Banco Mundial, o outro a representar os EUA na ONU, e sobretudo a crise política no Líbano – mostram o que valem as palavras apaziguadoras.

 Líbano: Crime da Síria ou da CIA?

A quem interessava o assassinato do antigo primeiro-ministro Hariri, esse riquíssimo homem de negócios, até há poucos meses aliado de Damasco? A grande imprensa europeia (Times, Corriere della Sera, El País, Libération), acusou desde logo a Síria da autoria do atentado, o que parece altamente improvável; só por espírito suicidário o regime de al-Assad, já na mira dos Estados Unidos, se lan­çaria em tal aventura. Com as investigações ordenadas pela ONU a cair em ponto morto (o que só por si é altamente suspeito), o mais certo é que nada se descubra. Basta po­rém procurar quem são os beneficiários do atentado e da onda de manifestações “espontâneas” que se seguiu para suspeitar que estejamos perante mais um acto de diversão da CIA ou da Mossad, ou de ambas. A presença das tropas sírias no Líbano garantia o apoio ao Hezbollah, protegia os campos de refugiados palestinianos e pressionava os sionistas a sair da Cisjordânia. Por isso a retirada dos sírios é um claro triunfo para Sharon. Quanto às vantagens para Bush são óbvias. Confrontado com a intolerável aliança recentemente concluída entre a Síria e o Irão, o Pentágono vai desenrolar todo um programa metódico de pressão e de provocações sobre a Síria, sem excluir a possibilidade de uma invasão armada.

E nesta nova aventura, o clã de Bush conta com a cumplicidade da França. Tradicional manipuladora da burguesia “cristã” libanesa, Paris sonha com um regresso em força ao Líbano. O que diz tudo sobre as “objecções de princípios” que a França faz aos Estados Unidos.

Palestina:  Os eternos sacrificados

Outra cartada bem sucedida de Bush foi o “apazigua­mento” na Palestina, com o compromisso de cessação das hostilidades assinado em Charm El-Cheik por israelitas e palestinianos. A segunda Intifada, e os seus 3585 palestinia­nos mortos, civis na quase totalidade, muitos deles jovens, é assunto a esquecer.

George Bush está a permitir de novo aos europeus a participação no jogo da Palestina, mesmo sabendo que isso não agrada de todo a Sharon. Mas com essa espécie de prenda espera pode envolvê-los mais na difícil questão ira­quiana.

A realidade é que Sharon permanece inflexível quanto à manutenção do controle israelita sobre a maior parte da Cisjordânia, que insiste em chamar “Judeia e Samaria”. Focando a atenção da opinião internacional no folhetim da evacuação dos colonatos na faixa de Gaza, como prova da sua “boa vontade”, vai dando novos passos na construção do Muro e das estradas reservadas aos colonos na Cisjor­dânia.

A agência Reuters noticia, citando a imprensa de Tel Aviv, que Israel pretende construir este ano 6.390 novas casas nos colonatos judeus da Cisjordânia, a somar às 3000 casas edificadas nos últimos dois anos. Os já 225.000 os israelitas a viver em 120 colonatos nos territórios ocupados da Cisjordânia serão multiplicados várias vezes. Embora o governo de Ariel Sharon se tenha comprometido a desman­telar estes colonatos ilegais, o seu plano é criar uma situação de facto que torne “psicologicamente impossível” a restitui­ção dos territórios ocupados. Como de outras vezes no passa­do, as concessões aparentes de Sharon servem de veículo a ganhos territoriais a longo prazo.

Irão: “Desafio intolerável”

 Entretanto, vai seguindo o seu caminho a preparação da opinião pública mundial contra outro dos “Estados pá­rias”, o Irão. Como anteriormente no Iraque, Washington demonstra a sua “paciência” dando prazos ao regime de Teerão para se dobrar às suas exigências, até que anuncie que “não se pode esperar mais”. Os pretextos são basica­mente semelhantes aos usados contra o Iraque: a ameaça nuclear e os direitos humanos. As motivações reais, de que se fala muito menos, são outras: o Irão, segunda reserva mundial de petróleo (produção de 2,7 milhões de barris/dia), assinou enormes contratos de fornecimento de petróleo à China, à índia e ao Japão; prepara-se para entrar, com o apoio da China e da Rússia, no grupo de Xangai; e está a projectar a criação de uma “bolsa petrolífera” em Teerão, para concor­rer com as praças de Londres e Nova Iorque. Se esta iniciativa for por diante, os centros financei­ros anglo-americanos ver-se-ão privados das ren­dosas manipulações com os preços do crude e, pior ainda, na nova bolsa de Teerão, os produtos serão cotados em euros e não em dólares.

Para além do desenlace mais que duvidoso de uma invasão (o Irão é um país poderoso, que não se compara com o Iraque exausto e arrui­nado de 2003), Washington teria que gastar mui­to dinheiro para conseguir que a UE, a China e a Rússia fechassem os olhos a essa nova aventura. Para já, a aposta parece ser pois nas manobras de desestabilização interna, que tão bons resultados têm dado nos países do Cáucaso e da Ásia Central que faziam parte da ex-URSS.

A “vocação europeia”: aproveitar as sobras

Recebido em Bruxelas de forma cordial e com renovadas promessas de eterna amizade, George Bush marcou pontos junto do aliado europeu recalcitrante. Acenando com a ameaça de reduzir as trocas tecnológicas, conseguiu mais um adiamento na decisão europeia de levantar o embargo da venda de armas à China. E arrancou aos mem­bros europeus da NATO uma resposta positiva ao pedido de ajuda para a formação do exército e da polícia iraquianas. Contudo, no habitual jogo com o pau de dois bicos, seis países informaram logo de seguida não terem condições para enviar oficiais para o Iraque. E dez dias antes da visita de Bush, o chanceler Schrõeder fez questão de declarar acintosamente que “a NATO não é o local mais adequado para os parceiros transatlânticos discutirem e coordenarem as suas estratégias”.

Outro sinal de alarme para Washington: logo a seguir à digressão ianque, Schrõeder e Chirac, com Zapatero a rebo­que, promoveram um encontro com Putine. O eixo Berlim-Paris, que é o verdadeiro governo da UE, empenha-se em fazer esquecer a Moscovo o desgosto pelo golpe sofrido com as “revoluções” na Ucrânia e no Quirguizistão e procura “ancorar a Rússia à Europa”.

Ao mesmo tempo que aproveitam as sobras que lhes deixa o grande meliante, os governantes europeus traba­lham sem descanso para reforçar as suas posições próprias. Com a crise económica a eternizar-se, a UE não deixa passa nenhuma ocasião de promover os interesses das suas mul­tinacionais; ao lado dos Estados Unidos, quando possível; mas sem eles, e mesmo contra eles, quando necessário. Não é necessário demonstrar os perigos que este jogo de salteadores acumula para a humanidade. 

Política Operária nº 99, Mar-Abr 2005

 

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