Renascimento comunista – basta de mal-entendidos!

Francisco Martins Rodrigues

O “marxista-leninista” Gastaud concebe o socialismo como um regime de tipo napoleónico. Temos que lhe dizer que esse programa não serve ao proletariado.

Já aqui nos referimos ao encontro “Civilização ou bar­bárie”, que teve lugar em Serpa e Moura, em Setembro de 2004, por iniciativa do site resistir.info e da revista Vértice. Teve aí destaque uma comunicação de Georges Gastaud, antigo dirigente local do PCF, agora animador do Pólo de Renascimento Comunista em França*. Pela ambição globalizante das suas análises e pela energia com que defende as suas convicções, Gastaud é tido como ideólogo da cor­rente comunista em que se insere o PCP, pelo que vale a pena comentar os seus conceitos. Sobretudo para ver como aparentes coincidências de pontos de vista na área da es­querda podem esconder divergências de fundo.

PONTOS DE ACORDO

O capitalismo, entrado “na sua fase senil e exterminista”, afirma Gastaud, tem que ser enfrentado com “um combate de classe e uma resistência popular”, capazes de “romper a cadeia do imperialismo num ou em vários países para se orientar abertamente para o socialismo”. “E preciso restituir à classe trabalhadora o seu papel político dirigente no movi­mento social”, porque nos esperam confrontos de classe muito duros, que os chamados “altermundialistas” e altereuropeístas”, com a sua utopia de uma mundialização capi­talista “de rosto humano” ou de uma Europa imperialista “socialmente regulada”, mostram não compreender.

Defensor do “não” a  esta  ou   qualquer outra Consti­tuição Europeia, Gastaud critica certeiramente a Confede­ração Europeia de Sindicatos e o Partido da Esquerda Europeia como “cartéis social-democratas e europeístas”. Fustigando a “fúria de autoliquidação dos partidos comu­nistas”, a “obsessão antileninista”, o “marxismo universitário bem comportado e castrado” e a “acção de criminalização do comunismo a que se prestam tantos pseudocomunistas”, proclama com toda a razão que “é preciso não menos comunismo, mas mais e melhor comunismo, mais mar- xismo-leninismo e mobilização proletária”, mais internacio- nalismo proletário, mais apoio às insurreições populares do Iraque, Palestina, Colômbia, etc.

Tudo excelente até aqui. A tal ponto que quase nos perguntamos se há de facto razões sérias que nos impeçam de alinhar na corrente a que Gastaud pertence.

DERRAPAGEM

Mas quando Gastaud tenta explicar o desaparecimento da União Soviética apercebemo-nos de que a sua concepção de socialismo e o objectivo da sua luta são inteiramente diferentes dos nossos.

Gastaud parte da convicção (ainda hoje muito difun­dida) de que na URSS dos anos 30 se estava a “construir o socialismo”. Em sua opinião, a “hipertrofia do Estado” e os “graves desvios” burocráticos e policiais do tempo de Staline não impediam a “manutenção e o desenvolvimento do socialismo”, patente na industrialização, planificação, ple­no emprego, cultura, conquista do espaço… O erro da direc­ção do PCUS teria sido não ter promovido depois de Staline um “incremento mais vasto da democracia socia­lista” e o “reforço dos sovietes” e, em vez disso, ter entrado na via da capitulação perante o imperialismo.

Há aqui uma tremenda mistificação. A tese do “socia­lismo manchado por desvios e erros” só se sustenta na medida em que se faça tábua rasa das relações de classe que serviam de base ao regime da União Soviética. Entusias­mados com as grandiosas realizações económicas da URSS, com a sua política externa anti-imperialista, com o seu papel na luta contra o nazismo, com o título de comunista do partido no poder, estes admiradores da antiga URSS não se perguntam se alguma vez o socialismo pode ser compa­tível com o facto de a população trabalhadora “soviética” estar privada do controle do poder, de liberdade de expres­são e de organização, e ser explorada por uma camada dirigente arvorada em sua representante e tutora.

Se a URSS foi de facto um tipo de sociedade original, avançada em muitos aspectos devido à sua origem revolu­cionária, e que durante décadas causou sérios embaraços ao imperialismo, essas originalidades têm que ser explicadas por outra forma, não apelidando-a de socialista.

Tentando responder a estas objecções, Gastaud adianta o seu “contributo teórico” – que é uma confissão preciosa daquilo que a maioria dos “ortodoxos” pensam sem o dizer. O socialismo, escreve ele, é um regime que “funciona ‘com consciência’” e no qual “o papel das direcções e dos partidos é incomparavelmente mais forte do que nos mo­dos de produção anteriores” (p. 214, sublinhado meu). Assim, na URSS havia “ditadura do proletariado”… mas esta era exercida por intermédio do partido e dos seus líderes supremos — que eram a verdadeira “consciência” das massas e que, naturalmente, estavam sujeitos a cometer “desvios e erros”…

A partir daqui, já não há nada de extraordinário no facto de a “segunda revolução” de Staline ter instaurado, pela força, o socialismo numa sociedade de capitalismo atrasado, esmagadoramente camponesa. Gastaud acredita que a “liberdade humana” e a “natureza dialéctica das deter­minações históricas” permitem tais saltos. Logicamente: basta dotar o proletariado com uma “direcção forte”…

Na concepção autocrática de Gastaud, o socialismo surge pois através da modernização económica promovida por uma direcção todo-poderosa, se necessário à custa de mão dura sobre as massas populares. E não apenas na situa­ção particular da Rússia e da China, onde havia um grande atraso económico, mas como lei geral, visto que, para ele, o socialismo se define pelo “papel incomparavelmente mais forte das direcções e dos partidos”.

Isto diz tudo sobre a ideologia de Gastaud – a qual, observe-se de passagem, já nada tem de comum com a dos stalinistas que ele tanto admira. Porque, se os stalinistas foram arrastados, no entrechocar brutal da luta de classes interna e da agressão imperialista, a abdicar das suas convic­ções revolucionárias iniciais e a justificar o capitalismo de Estado e o seu regime despótico como o “socialismo” possível, nos dias de hoje, pretender copiar essa lógica para a Europa imperialista, onde as relações capitalistas e a proletarização da massa da população chegam ao auge, indica interesses de classe inteiramente diferentes.

O sonho “socialista” de Gastaud exprime a ânsia da democracia pequeno-burguesa, em busca de uma saída con­trolada para a catástrofe em que ameaça mergulhar-nos o capitalismo agonizante: um “socialismo” pela mera estatização da economia sob direcção férrea dum corpo de buro­cratas e tecnocratas; um capitalismo de Estado travestido de “socialismo” e não a superação das relações capitalistas através da intervenção revolucionária da democracia de massas.

TUDO PELA NAÇÃO

Mas não é certo que Gastaud atribui ao proletariado um “papel político dirigente”? Sim, mas esse é um mero exercício de retórica, como sobressai das ideias que ele de­senvolve na mesma comunicação, ao referir-se à União Europeia e ao partido comunista.

Gastaud apela a que se combata a integração europeia porque conduz à “desintegração da nação” e “põe em jogo a própria existência da República Francesa”. Ele quer que os comunistas sejam os “campeões do patriotismo popular e republicano”, porque a adopção da Constituição Euro­peia “anunciaria por muito tempo o fim das independências nacionais e das perspectivas socialistas”.

Ou seja: em vez de entender o actual processo de globa­lização como um passo gigantesco no sentido da internacionalização do proletariado, da revolução mundial e da queda final do capitalismo, Gastaud vê no fim das independências o “fim das perspectivas socialistas”. O seu “socialismo” é concebido no âmbito da nação, isto é, da burguesia. Sem nação, não haverá socialismo… A tal ponto que nem se aper­cebe do grotesco de um comunista francês apelar, hoje, à salvação da República Francesa, essa precursora do imperia­lismo moderno, culpada de mil crimes sangrentos contra o proletariado e os povos.

O mesmo quanto às exortações de Gastaud para a criação do “verdadeiro Partido Comunista”. Ele localiza no ano de 1992 o início de uma “mutação” no PCF, devido ao “trabalho de sapa de uma fracção abertamente refor­mista instalada na direcção do partido” e informa-nos que prosseguiu até 2003 o “combate interno pela renovação revolucionária do PCF”. Que espécie de perspectiva comu­nista pode ter quem andou até há três anos a bater-se pela “renovação revolucionária” do PCF, partido corrompido pelo reformismo e pelo nacionalismo quase desde a ori­gem, agente da colaboração de classes, ajudante subalterno de governos reaccionários?

O marxismo-leninismo de Gastaud, com a sua retórica inflamada, assenta num tremendo mal-entendido. Ele expri­me, sob o nome comunista, os anseios da pequena burgue­sia de voltar ao passado, em busca de um utópico capita­lismo “popular”, “racional”, não-monopolista. Apreciamos o seu anti-imperialismo sincero e combativo, mas temos que lhe dizer que os comunistas não estão disponíveis para continuar a alistar-se ao serviço de utopias pequeno-burguesas.    

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* Capitalismo exterminista ou renascimento comunista?”, Georges Gastaud, Vértice, Jan-Abril 2005.

 Política Operária nº 105, Mai-Jun 2006

 

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