Francisco Martins Rodrigues
A série de artigos com que Ronaldo Fonseca tem vindo a desenvolver, ao longo dos últimos dois anos, os seus pontos de vista nas páginas da PO[1] teve a vantagem de tornar mais claro o que nos separa e permitir um balanço às nossas diferenças.
Vladimiro Guinot já aqui mostrou[2] o que há de equívoco no conceito dos reformistas “sérios”. O chamado “reformismo sério” que, para RF, é “um processo conduzido por organizações políticas efectivamente implantadas no terreno do proletariado e representando-o maioritariamente” (105:33), representa de facto os interesses de uma facção da burguesia dos seus países, precisamente a facção nacionalista burguesa que RF afirma não existir na América Latina (105:34). Ele chega a esta estranha conclusão, que diz “científica”, negando capacidade de representação política a todos os sectores burgueses que não fazem parte da oligarquia de banqueiros e latifundiários vendidos ao imperialismo. Mas é uma posição indefensável. Sobretudo agora, quando facções burguesas nacionalistas se reactivam por toda a América Latina, aproveitando a rivalidade entre EUA, UE, China, etc.
Naturalmente, a subida ao poder desses sectores nacionalistas burgueses pode ser muito favorável ao movimento operário e popular desde que este tenha claro que continuam a ser seus inimigos estratégicos, mesmo quando proclamam a intenção de “passar ao socialismo”. E isto porque as suas “reformas económicas de fundo”, com a estatização de sectores-chave da economia, servem o desenvolvimento capitalista. É verdade que eles se opõem ao imperialismo mas daí até afirmar, como faz RF, que é “impossível estabelecer uma distinção política entre luta anti-imperialista e luta anticapitalista”. (105:34) vai uma enorme distância. O “anticapitalismo” de Chávez ataca privilégios monopolistas e latifundistas que obstaculizam o pleno desenvolvimento das relações capitalistas. As suas promessas socialistas até podem ser bem-intencionadas mas, na prática, servem para arregimentar o povo atrás da burguesia nacional, na disputa desta com a oligarquia e os EUA. Com frequência, quando o seu projecto corre mal, os “reformistas sérios” ‘mudam a arma de ombro” e atacam de surpresa os interesses populares para conseguir um acordo com os seus inimigos da véspera. É o que começa a anunciar a trajectória de Lula, ainda há poucos anos aclamado por boa parte da esquerda como “reformista sério”.
Isto, para RF, é puro sectarismo. Preocupado (como nós, alias) com a prostração da esquerda a nível mundial, acha que o decisivo é aproveitar os “sulcos à esquerda” abertos pelos reformistas “sérios”, pois proporcionam uma “entrada massiva do proletariado na cena política”. E põe tanto empenho nessa tarefa que passa para segundo plano o mais difícil, aquilo que nos falta e que é decisivo: conseguir que o proletariado entre na cena política por sua própria conta e não como força de apoio dos reformistas, por muito sérios que sejam.
RF, é certo, não põe em dúvida que “serão necessários partidos revolucionários de massas”. Mas, na prática, só vê defeitos e taras aos que tentam construir esses partidos — “isolacionismo moralizante”, “derrotismo”, “sectarismo vesgo”, “grupusculização estéril e sectária”, “desprezo pedante contra lutas concretas”, “núcleos iluminados, à margem dos movimentos que já estão no terreno da lutas”, “vanguardismos estéreis”… Pelo que só lhe resta uma via: metermo-nos organicamente dentro dessas novas experiências históricas, “em interacção criativa, aberta e democrático- -revolucionária com os novos e antigos movimentos sociais” (104:34). Assim, em nome do combate às seitas incapazes de se lançar na luta política, acaba por se considerar a criação de uma corrente de classe e de uma organização de classe como um estorvo.
Aproveitar os “sulcos” abertos pelos reformistas? Óptimo! Mas onde está a força capaz de fazer esse aproveitamento? Onde estão a independência política e a vigilância que impeçam sermos aproveitados? E aqui que surge toda a diferença que nos separa de RF. Tomando os seus exemplos: apoiamos as experiências de luta dos “novos movimentos sociais” mas sem esquecer que eles estão aprisionados no quadro de uma utópica reforma do capitalismo. Damos o maior valor à ocupação de latifúndios pelo MST mas sem perder de vista a orientação democrático-burguesa até agora imprimida ao movimento. Apoiamos sem reservas a resistência de Cuba ao imperialismo mas isso não nos obriga a dizer que exista ali poder popular ou socialismo em construção. Saudamos a vitória do “não” no referendo em França mas não temos ilusões na pretensa “unidade militante antineoliberal” da LCR e do PCF. E não acreditamos que a fusão na Alemanha do PDS com sectores de esquerda do SPD tenha “retirado o tapete à social-democracia”; cremos, pelo contrário, que ela esboça um refrescamento da social-democracia gasta e desacreditada.
Em resumo: não temos dúvida de que as vitórias parciais e institucionais podem servir “de patamares de apoio e acumulação de forças para novos avanços” (104:34), mas SÓ quando nelas está presente a influência revolucionária, capaz de as levar a franquear esses patamares. Se essa dinâmica não for introduzida por nós, os alertas de que os revolucionários deverão preparar as massas sob sua influência “para a inevitável luta armada (…) que, mais cedo ou mais tarde, será necessária e decisiva” (105:33) tornam-se letra morta. Só se preparam as massas “para a inevitável luta armada” se, em todas as etapas do processo, lhes tornarmos claro os destinos diferentes, e a prazo antagónicos, entre a via da revolução e a via do reformismo.
A raiz das opiniões de RF está, creio, nas lições que ele extrai das revoluções do século passado. Ele observa com razão que se tratou de “revoluções nacional-populares” em países atrasados e que, portanto, a transição ao socialismo era nesses países de uma extrema dificuldade; que os comunistas foram audaciosos e clarividentes ao tomar a condução dessas revoluções, mas não estava no seu poder dar um salto para o socialismo e que, portanto, a solução do capitalismo de Estado se tornou inevitável.
Até aqui tudo bem. Os problemas começam quando RF, confundindo o poder do partido com o poder da classe, acredita que o proletariado tinha inicialmente o poder económico “pela mediação da sua vanguarda mais consciente” (96:32, it. meu); e quando julga que, mesmo depois de instaurado o capitalismo de Estado de tachada socialista, o proletariado poderia ter assumido gradualmente o poder político, “integrando sectores cada vez mais amplos na gestão do poder”, se não tivesse aparecido o stalinismo.
O stalinismo, resultado da perda do poder económico e político pelo proletariado logo no início da revolução, é entendido por RF como causa do desastre. Transfere-se aquilo que teve uma origem social – o atraso do capitalismo na Rússia – para o plano da política – os desvios e crimes do regime burocrático stalinista. E nesta transferência é a questão fulcral, a natureza social do poder, que desaparece.
Vemos assim ressurgir, a propósito da revolução russa, a deformação que creio existir na perspectiva marxista de RF: as manobras de aproximação gradual ao poder agigantam-se de tal modo que substituem a preparação da classe para a tomada revolucionária do poder.
——————–
[1] P. O. n° 96,99,100,103,104,105. (As citações vão indicadas pelo n° da revista e n° de página).
[2] P.O. n° 104 e 106.
Política Operária nº 108, Jan-Fev 2007