Proletariado: classe para si ou classe para os outros?

Francisco Martins Rodrigues

No artigo “A arrumação e correlação das forças de classe na sociedade portuguesa”*, Manuel Brotas discute a questão das classes em Portugal, questão há muito praticamente abandonada pelos que entre nós se reclamam do marxismo, talvez sob a influência da propaganda em voga sobre os “arcaicos mitos classistas”. Só por isso, quanto mais não fosse, o artigo é de grande utilidade pela recolha e análise que faz dos números das estatísticas oficiais.

Na sua simplicidade, os números ajudam-nos a situar a base real em que se trava a luta social e política do país. Através das profundas transformações em curso, a socie­dade portuguesa continua dominada por dois pólos anta­gónicos: proletariado e burguesia — os que vivem da venda da sua força de trabalho e os que vivem do lucro obtido sobre essa força de trabalho. Polarização que não se atenua mas se acentua. Entre 1991 e 2001, o número de trabalha­dores por conta de outrem teve um aumento de 20% pela incorporação no trabalho assalariado de isolados, indepen­dentes, domésticas, etc., atingindo no último daqueles anos os 3,8 milhões – sinal da generalização da compra e venda da força de trabalho a todos os sectores de actividade.

Desta massa assalariada emerge o proletariado, ou seja, o conjunto daqueles trabalhadores que, não sendo proprie­tários de meios de produção ou de capital, são obrigados a vender a sua força de trabalho, criando mais-valia. Com 2,145 milhões no último daqueles anos (42% da população activa), continua a ser a maior classe nacional, embora tenha vindo a crescer mais lentamente nas últimas décadas. E com­posto por 1,5 milhões de operários industriais e 400 mil proletários de serviços; o proletariado agrícola e das pes­cas, em redução acelerada, já não vai além dos 100 mil. Um factor novo: cerca de meio milhão destes proletários, quase um quarto do total, são imigrantes.

Os outros assalariados (empregados, funcionalismo, intelectuais, etc.), a que o autor chama “camadas médias assalariadas” – e que Lenine na Rússia de há um século considerava, consoante o nível, ou “semiproletários” ou “semiburgueses” – são o segmento que mais cresce: aumen­taram meio milhão nos dez anos considerados, ascendendo a 1,8 milhões.

A pequena burguesia, numericamente importante (800 mil), vê reduzir-se a sua camada inferior (pequenos empresá­rios independentes ou com 1 ou 2 assalariados), que já não vai além dos 330 mil, enquanto cresce a camada superior (pequenos patrões, até 10 assalariados), com 480 mil.

Por fim, a burguesia grande e média (empresários, admi­nistradores, quadros) engloba cerca de 100 mil pessoas.

Toda a restante população (5,3 milhões, pouco mais de metade da população total) faz parte dos “inactivos” (refor­mados, estudantes, domésticas, incapacitados, forças arma­das) e distribui-se pelas várias classes.

Desde logo, estes números desmentem duas ideias mui­to vulgares na esquerda, de há uns anos para cá: a de que haveria uma tendência para o “desaparecimento” da classe operária e para a “liquidação” da pequena burguesia.

Como se compreende que, justamente na esquerda, tenha surgido a ideia de estar em vias de extinção aquela que con­tinua a ser a maior classe nacional? De facto, o que desapare­ceu foram as grandes concentrações operárias, com maior experiência de intervenção na acção sindical e política, que formavam a base de apoio da esquerda tradicional. Daí a sensação de se estar a assistir ao “fim do proletariado”, quan­do na realidade se mantêm muitos antigos sectores proletá­rios e surgem outros novos, formados em grande medida por precários e imigrantes, sem experiência de organização de classe – o que coloca responsabilidades acrescidas na sua formação e educação. Em vez de chorar o fim da clas­se, a esquerda comunista tem pela frente uma pesada tare­fa, comparável à que empreenderam no começo do século passado anarco-sindicalistas e comunistas: começar a partir do zero a penetração neste proletariado desconhecedor do marxismo.

A estatística também não se compadece com a ideia de que a pequena burguesia estaria a ser “ceifada” pela con­centração capitalista. Tal como o proletariado, ela está so­frer uma recomposição profunda: diminuem as camadas dos pequeníssimos burgueses trabalhadores, de tipo pré-capitalista, mas aumentam as camadas de uma autêntica pequena burguesia moderna, de pequenos patrões, progressivamente mais integrados na actividade do grande capital, por via do franchising, etc., como observa o autor do artigo. Sobre o reforço do núcleo da burguesia, entrelaçada com o grande capital europeu, nem vale a pena falar.

Ou seja: a um proletariado hoje mais disperso e desar­mado do que há 30 anos, pela desintegração do seu núcleo avançado, opõe-se agora uma classe burguesa mais com­pacta, mais integrada e mais experiente. O quadro não é de molde a euforias mas é assim que o devemos encarar.

Vejamos agora que conclusões tira Manuel Brotas dos dados que ele próprio recolheu.

Ele assinala que no proletariado não podem ser conta­dos aqueles assalariados que desempenham funções de ex­torsão da mais-valia, por exemplo, tarefas de controlo admi­nistrativo ou disciplinar no enquadramento de trabalhado­res. Mas logo a seguir ele amplia o proletariado ao incluir na “classe operária” muitos empregados de escritório, assa­lariados intelectuais e quadros técnicos, engenheiros, cientis­tas, etc., sob o argumento de que desempenham um trabalho produtivo e portanto criam valor. Ora, se há entre esses trabalhadores muitos cujo trabalho cria valor, a questão é saber se a sua taxa de exploração, o seu lugar no processo produtivo, as suas ligações de classe, permitem situá-los no proletariado. Parece-nos tal indefensável. Basta perguntar­mos se o interesse real de classe dessas camadas aponta para a liquidação do capitalismo ou para a sua preservação para termos a resposta.

Pode dizer-se, e é verdade, que a concepção demasiado ampla de proletariado formulada por M. B. não tem grande significado numérico; mas ela dilui a sua natureza de classe antagónica do capitalismo, e isso atinge toda a perspectiva da luta de classes, como se vai ver.

Ao mesmo tempo que esbate as fronteiras do proletaria­do, M. B. divide artificialmente a burguesia em duas partes antagónicas; ele pensa que existe uma “fractura” cres­cente entre a fracção monopolista e o resto da burguesia (“agrava-se o conflito entre a burguesia monopolista e as outras fracções da burguesia”).

Que há conflitos internos na classe burguesa, nem é ne­cessário dizê-lo – essa é a condição imanente de uma classe por natureza predadora, em que se joga diariamente a disputa das oportunidades de lucro, a partilha da mais-valia extor­quida ao proletariado. Mas, justamente, esse carácter de sugadores do trabalho assalariado empurra todas as fracções da burguesia para um mesmo campo nas questões centrais da defesa da ordem instituída e do poder do Estado e, mais ainda, de cada vez que o seu domínio sobre a sociedade é posto em causa pela resistência dos explorados. Lutando entre si, as diferentes fracções da burguesia nunca esquecem que estão do mesmo lado da barricada e que a ameaça para o seu futuro vem do proletariado. Este dado elementar, já observado centenas de vezes na experiência da luta de clas­ses, e entre nós muito claramente na crise de 1975, é iludido por M. B.

Assim chega ele à conclusão de que “os dois pólos aglutinadores da vida e das lutas sociais” não são burguesia e proletariado, mas a burguesia monopolista, dum lado, e o vasto campo do proletariado (amplo) reforçado pelos seus aliados burgueses, do outro.

Ele defende-o sem meias palavras. Primeiro, dado o forte aumento das camadas intermédias assalariadas, “se os par­tidos democráticos [leia-se PCP] se tornarem os represen­tantes ou, pelo menos, os melhores interlocutores políticos destas camadas”, poderá abrir-se uma saída antimonopolista”, pelo que se “reforça a importância da aliança da classe operária com os intelectuais e outras camadas intermédias”. Mas não só: como a burguesia monopolista aprofunda a sua integração com o grande capital internacional, resulta daqui que “a luta contra a burguesia monopolista, conduzida pela classe operária, é simultaneamente uma luta pela inde­pendência e soberania nacionais, susceptível de mobilizar uma vasta frente social, incluindo sectores da média bur­guesia”.

Naturalmente, ninguém nega que se possam neutralizar as tendências reaccionárias de uma parte da pequena burgue­sia durante uma crise revolucionária. Podem, mas só se o movimento proletário dispuser de uma força esmagadora, capaz de arrastar essas camadas, de as convencer a cair para o lado do mais forte, isto é, se o proletariado não se rebaixar ao papel de servente político da pequena burguesia e traçar o seu próprio rumo independente. A isto se resume, muito prosaicamente, o “progressismo” da pequena burgue­sia que tão embevecidos deixa os adeptos do PCP.

Quanto às virtualidades democráticas e patrióticas da burguesia em geral, estamos conversados. A ideia é tão absur­da que não merece discussão.

Assim naufraga a análise de classes de Manuel Brotas. Exibindo uma fidelidade “irrepreensível” aos conceitos mar­xistas, a sua argumentação acaba por nos levar para o terreno da pseudo-estratégia do PCP, a “democracia avançada rumo ao socialismo”.

Quando o primeiro passo para criar o campo da revolu­ção é averiguar com exactidão como se comporta cada classe e cada fracção de classe perante a luta proletária pelo socia­lismo, os “marxistas” da escola cunhaliana convidam o pro­letariado a unir-se à boa burguesia para, numa “primeira etapa”, “democratizar”… uma sociedade agonizante, dilace­rada num antagonismo insolúvel entre proletários e capita­listas, mergulhada numa rota de catástrofe como província periférica do império Europa.

O traço central do revisionismo português sempre foi este esforço para convencer o proletariado a aceitar a peque­na (e a média!) burguesia como aliada da revolução. Primeiro com o argumento de que todos os “portugueses honrados” queriam o fim do fascismo (o que não era verdade); agora com o argumento de que todos os democratas querem o fim dos monopolistas sem pátria (o que é igualmente falso). Por isso dizemos que o amor do PCP pelo proletariado tem por meta pô-lo ao serviço da pequena burguesia. Quem ainda não entendeu isto, poderá ser um democrata, um sindi­calista, um anti-imperialista, mas não é certamente um mar­xista.  

* Difundido em resistir.info, como desenvolvimento de um arti­go publicado no Militante de Novembro/Dezembro 2004 e Ja­neiro/ Fevereiro 2005.

Política Operária nº 102, Nov-Dez 2005

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