Direitos da mulher não é política?

Francisco Martins Rodrigues

Dois artigos sobre a questão da mulher na Ruptura, órgão da FER[1], são pretexto para estes comentários. No primeiro, a propósito de um encontro do Bloco de Esquerda dedicado à luta da mulheres, Cristina Portella defende que os problemas “de género” (aborto, violência doméstica, prostituição, etc.), sendo “transversais à luta feminina” por se aplicarem a burguesas e proletárias, devem ser subordinados aos problemas autenticamente de classe: desigualdade salarial, precariedade, creches, desemprego, pobreza.

E argumenta: “Se é possível e desejável que muitas lutas contra a opressão da mulher sejam levadas, em unidade de acção, com todas as mulheres, este não deve ser o nosso objectivo estratégico. A luta contra a opres­são de género está directamente vinculada à luta contra a explora­ção de classe e subordina-se a esta”.

A mesma ideia é retomada, numa perspectiva histórica, no outro artigo, de Liliana Inverno: “A ênfase na luta pelo direito ao voto, que era essencialmente uma reivindicação da pequena burguesia e das classes médias radicalizadas, obscureceu o papel desempenhado pela mulher trabalhadora e as suas reivindicações. (…) Quando em 1975 a ONU reconhece o 8 de Março como o Dia Internacional da Mulher, este já não representava a luta radical e revolucionária da mulher trabalhadora contra a exploração capitalista, mas a vitória do género feminino contra a opressão masculina, materializada na obtenção do voto, direito à propriedade e igualdade legal”. “Este apagamento histórico criou a assunção de que todas as mulheres, burguesas ou da classe trabalhadora, partilham os mesmos proble­mas. Porém, se é verdade que todas as mulheres partilham proble­mas comuns (violência doméstica, machismo, criminalização do aborto), a mulher trabalhadora vê a sua situação agravada pela dupla jornada de trabalho”.

Encontramos nestes artigos a ideia, tradicional nos partidos comunistas, de que as reivindicações feministas, pelo seu carácter burguês, podem desviar as mulheres proletárias da luta de classe contra a exploração capitalista. Ideia que tem muito que se lhe diga e que vou usar conto ponto de partida para passar em revista as nossas concepções correntes quanto á questão da mulher.

GÉNERO CONTRA CLASSE?

Criticar a luta das feministas porque teria “obscurecido a luta das mulheres trabalhadoras” não faz sentido. Hoje ninguém nega que foi a luta dos democratas contra a servidão, pelas liberdades políticas, que criou o terreno do direito burguês sobre o qual se ergueu a luta independente dos proletários contra o capitalismo; como se pode então negar a importância dessa luta no que toca aos direitos das mulheres? As “questões de género” são um prolonga­mento na época actual daquilo que a revolução burguesa não reali­zou devido ao peso da dominação patriarcal. Contrapor a luta geral das mulheres pela sua emancipação à luta de classe é aberrante. Pensemos só qual seria hoje o estatuto da mulher se gerações de feministas burguesas (e não só) não se tivessem batido pelos direi­tos elementares de votar, de se divorciar, de falar em público, de dispor dos seus bens, de abortar…

QUESTÃO DE EDUCAÇÃO CÍVICA?

Mesmo entre os que reconhecem a subjugação a que a mulher está sujeita, há a tendência para a transformar num problema moral e não social. Muitos camaradas não têm dúvida em condenar A ou B porque agride, intimida ou sobrecarrega a sua companheira (aliás, são tão explícitos nessa condenação como são condescendentes na apreciação que fazem da sua própria atitude na matéria); mas já têm muita dificuldade em ir além desse plano pessoalizado e ver o quadro no seu conjunto: a subjugação e exploração, à escala de toda a sociedade, do género feminino pelo género masculino – e isto independentemente da imensidade dos casos individuais mais positivos ou mais negativos. Esta transposição da questão do ma­chismo para o plano individual e moral é uma defesa do próprio machismo: aceitamos condenar os “excessos” para não termos que pôr em causa o sistema de relações estabelecido.

O “machismo” não são apenas atitudes ou palavras discrimina­tórias, como por vezes se pensa; são relações de opressão e explora­ção de um sexo sobre o outro. Opressão e exploração tornadas invi­síveis no dia-a-dia por serem aceites como “normais” por ambas as partes, mas nem por isso menos destruidoras.

“LUTAS MENORES”

Todos já ouvimos o argumento daqueles comunistas cujo espíri­to revolucionário não se compadece com questões tão “secundárias” como a luta das mulheres pela igualdade, mero capítulo do direito burguês, quando vivemos na época anunciadora das grandes convul­sões da revolução socialista. Mas, é curioso, esses mesmos comunis­tas compreendem sem dificuldade que as pequenas lutas dos pro­letários para reduzir a exploração ou para eleger um deputado co­munista ao parlamento podem servir de trampolim a uma maior combatividade dos proletários. Porque não vêem então essa mesma potencialidade revolucionária na luta das mulheres pela igualdade de direitos? Porque o movimento, esmagadoramente dominado pelos homens, segrega o seu próprio chauvinismo machista, por receio de perder privilégios. Esta é a crua verdade.

“LUTA DE CLASSE É QUE INTERESSA!”

“O que interessa agora – dizem-nos – é pôr as mulheres a lutar pelo salário, por creches, contra o desemprego, contra os patrões”. Parece não lhes ocorrer que mulheres tuteladas, diminuídas, habi­tuadas a obedecer, discriminadas, quantas vezes achincalhadas pelos companheiros de trabalho e esmurradas em casa, colectivamente rebaixadas por uma exploração sexual desbragada, têm que ter a sua capacidade de luta social mutilada. Podem as mulheres prole­tárias tomar-se lutadoras conscientes e em massa contra o sistema enquanto continuam submetidas a este estatuto degradante? Acreditá-lo equivale a querer que a mulher faça a sua “revolução socialista” sem passar pela sua “revolução democrática”. O primeiro passo para uma mulher operária se tomar lutadora anticapitalista consequente é ser capaz de se afirmar em pé de igualdade na socie­dade. E isso passa pela famigerada questão do “género”. A luta pela igualdade é paralela e não oposta à luta contra a exploração patro­nal. Cada frente reforça a outra.

FEMINISMO É BURGUÊS?

“O movimento feminista é burguês”, diz-se e é verdade, em grande medida. As mulheres da burguesia, dispondo de muito mais meios de luta do que as mulheres proletárias, levantam as suas próprias reivindicações de emancipação: querem a igualdade como burguesas, querem ser burguesas de corpo inteiro, ter o mesmo acesso aos lugares dirigentes e às profissões melhor remuneradas, etc. Mas isto não pode ocultar a outra face da questão: a luta contra a opressão e discriminação da mulher é transversal a todas as classes, porque todas a mulheres, em todas as classes, são atingidas, de uma ou de outra maneira, por essa opressão masculina.

A luta pela emancipação feminina só é conduzida por movimen­tos feministas burgueses e só se concentra em metas de interesse para as mulheres da burguesia porque ainda não surgiu no seio do proletariado uma corrente feminista revolucionária. Os comunistas que receiam ver as suas camaradas proletárias cair sob a influência de movimentos feministas burgueses deveriam perguntar-se se não é a sua omissão nesta área que deixa o movimento das mulheres entregue ao feminismo burguês.

“EMANCIPAÇÃO É IMPARÁVEL”

Há também os optimistas: uma vez que o capitalismo, na sua marcha cega de acumulação, vai arrancando a mulher à estreiteza do lar e a lança no mercado de trabalho, ao lado do homem, basta aguardar que o sistema “liberte” a mulher do mesmo modo que “libertou” o homem de todos os laços que o prendiam à terra e ao ofício, para o tornar simples vendedor da sua força de trabalho.

Isto é falso, e por uma razão muito simples. O capitalismo, pela sua própria natureza, não pode deixar de aproveitar as vantagens que herdou das sociedades anteriores: traz a mulher para o traba­lho assalariado, mas não vai desperdiçar a fonte de lucros extra que resultam da sua tradicional subjugação ao homem: salários mais baixos pela mesma tarefa, duplo ou triplo horário de trabalho, mão-de-obra flutuante, submissão, apatia política. Sobrepõe a uma exploração outra exploração. A emancipação só pode ser arrancada pela luta.

DEPOIS, NO SOCIALISMO…

“Enquanto não acabarmos com o capitalismo, não criaremos as condições para acabar com a opressão da mulher”, argumenta-se, e esta é uma outra forma de iludir a questão. Nenhuma forma de opressão, seja ela qual for, desaparecerá enquanto a barbárie do capitalismo não for uma mera recordação no passado. Mas isso não significa que não tenhamos que lutar hoje, sob o capitalismo, contra elas. É no decurso das lutas contra essas formas de opressão que se eleva a consciência dos oprimidos e eles passam das reivin­dicações imediatas à luta pela revolução. Só quando se trata das mulheres é que esses camaradas acham que a regra não é válida…

Na verdade, o velho conselho “Aguentem agora a opressão, de­pois no socialismo sereis livres”, só parece sensato a muitos homens de esquerda devido ao grosseiro chauvinismo de que estão conta­minados.

MULHERES CONTRA HOMENS??

“Radicalizar a exigência de direitos iguais e instigar as mulhe­res a lutar contra os seus companheiros é introduzir um factor de divisão no seio do proletariado, com que só a burguesia tem a ga­nhar!”

Este raciocínio, que continua a gozar de fácil aceitação nos meios comunistas, faz lembrar a lógica da pequena burguesia democrá­tica, quando apela aos operários para que não lutem contra ela porque assim enfraquecerão as fileiras da luta comum contra o grande capital e o Estado… E o indicador mais gritante de que o proletariado, como classe, está dividido e enfraquecido pela per­sistência dos privilégios patriarcais.

Na realidade, o que o proletariado precisa é de, no decurso da luta contra a burguesia, travar a sua própria luta interna pela derro­ta do machismo. Os que nos alertam contra o perigo de atrasar a luta anticapitalista com reivindicações que “vêm dividir as fileiras do proletariado” deveriam antes pensar se não é a sua resistência à luta emancipadora das mulheres que está a atrasar a revolução e o socialismo.

OS HOMENS TAMBÉM PRECISAM DO FEMINISMO

Há ainda uma outra questão que costuma ser esquecida nesta polémica, que é a seguinte: a estreiteza de vistas e o conservadorismo que causa na consciência revolucionária dos próprios homens pro­letários o seu lugar de opressores e exploradores das suas próprias mulheres e do género feminino em geral. A incomodidade causada nos homens pelo movimento de emancipação das mulheres esten­de-se às fileiras da esquerda e da extrema esquerda. A cada passo deparamos com a tentativa de afastar o problema com gracejos, justificações, silêncios, quando não atitudes intimidatórias.

Claro, seria idealismo esperar que o movimento proletário, esmagadoramente masculino, tomasse a iniciativa de lançar uma campanha contra o machismo. Não o fazem pela mesma razão que leva qualquer grupo social a procurar preservar os seus privilégios. Têm que ser as mulheres a conduzir a luta pela sua emancipação, Mas isto não se pode aplicar aos comunistas, que só podem manter coerência revolucionária se assumirem integralmente a luta contra todas as formas de opressão e exploração.

Portanto, em vez de se desvalorizar o feminismo pela preponderância que nele exercem as mulheres burguesas, o que temos de perguntar é porque não animam os comunistas um feminismo de raiz proletária, que reconheça a luta pela igualdade de direitos da mulher como parte integrante da luta pelo fim do capitalismo.

[1] “Questões de género, sim. E as de classe?”, de Cristina Portella, Ruptura de Novembro 2004, e “A diluição histórica da luta de classes”, de Liliana Inverno, Ruptura, Março 2005.

Política Operária nº 100, Maio-Junho 2005

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