A Nova Europa e o fascismo

Francisco Martins Rodrigues

Talvez seja conveniente estarmos atentos aos ideólogos que já não suportam o “conservadorismo” das massas e querem “reformas arrojadas” do sistema político para a nova Europa “estugar o passo” e apanhar os EUA.

A cada passo, lemos críticas à lentidão com que avança o pro­jecto da grande Europa. 0 que talvez esteja a passar despercebido são as propostas inovadoras que começam a ser feitas para acele­rar o processo. Para não ir mais longe, vejamos o que opinam os nossos “europeístas” caseiros.

A UE não conseguirá “estugar o passo” e aproximar-se da pro­dutividade e do ritmo de crescimento dos EUA enquanto não ultra­passar os “populismos estúpidos e os exageros nacionalistas”, en­quanto os eleitores continuarem a ter meios para fazer sentir a sua “resistência às reformas” e os líderes europeus sofrerem da “fra­queza” que os leva a “ceder à facilidade e evitaras medidas impopulares ”, avisa o director do Público (19/6). E outro apaixo­nado da UE, Pacheco Pereira (numa série de artigos no mesmo jornal, em Junho-Julho), é ainda mais explícito: a Europa não conse­guirá competir com os Estados Unidos enquanto não vencer o senti­mento de culpa pelo seu passado colonial, não puser termo à “degra­dação dos valores marciais associados às Forças Armadas” e à “ne­gação dos valores de coesão ‘patrióticos’ mínimos necessários para uma nação entrar numa guerra”. Mais claro ainda: “Os governos democráticos fazem mal a guerra” porque a opinião pública não aceita as medidas necessárias: “reforço do segredo de Estado e do segredo militar, censura, suspensão dos direitos polí­ticos e sindicais, adiamento de eleições, etc.” Uma guerra a sério “é difícil de manter numa democracia aberta e dependente de ciclos eleitorais curtos”.

Não são necessárias grandes interpretações: o que aqui está dito é que para competir com os EUA em crescimento económico e em poder guerreiro, a Europa tem que se desfazer de luxos demo­cráticos e adoptar um regime de tipo fascista. Só isto.

Já de si, é sintomático que um tal programa totalitário esteja a ser defendido publicamente, não por quaisquer escribas desgarrados de extrema direita mas por porta-vozes assumidos do “Estado de direito democrático”. Mais significativo ainda é tais opiniões não suscitarem controvérsia, nem sequer reparos. Isto indica que as sementes plantadas desde o 11 de Setembro para a “luta global contra o terrorismo” estão a germinar e que está em curso uma viragem de fundo no pensamento político da burguesia.

Os Pachecos e os Fernandes não são lunáticos: eles interpre­tam acertadamente as exigências históricas que defron­tam a UE. A UE só será viável se instaurar um poder forte, rompendo com os entraves que representam as liberdades e as conquistas sociais herdadas de outros tempos. Essa ruptura, aliás, está já em marcha com as leis antilaborais, o desmantelamento dos serviços públicos, as privatizações, o reforço das polícias. Mas ainda agora a procissão vai no adro. Isto é só o começo. Para chegar ao nível dos EUA falta muito mais, como eles não se cansam de dizer. Vai ser preciso ter a ousadia de dar o passo para um regime abertamente antipopular.

Há quem pense que tal não será possível devido aos “valores há muito enraizados na vida política europeia”. E há mesmo quem queira descobrir na UE um exaltante “património genético – liber­dade, igualdade, tolerância, democracia, Estado de Direito, direitos humanos, respeito pelas minorias” (Teresa de Sousa).

Isto não passa de balelas. Por duas razões. Primeiro, o regime de democracia burguesa que conhecemos na Europa não foi fruto de nenhum “espírito do progresso”, mas da Revolução Francesa e das grandes revoluções populares que, nos séculos XVIII-XIX, arrancaram ao Antigo Regime e à burguesia o reconhecimento das liberdades fundamentais. E as posteriores “conquistas sociais” europeias também só surgiram graças ao impulso da Revolução Russa junto das massas e à derrota do nazi-fascismo. Em cada Estado, a burguesia foi forçada, devido a revoluções e guerras, a fazer concessões às massas – é esta, muito prosaicamente, a ori­gem do “modelo social europeu”.

Ora, o “património genético” da União Europeia é justamente o contrário disto. A União Europeia é uma construção de um tipo nunca visto, um superaparelho estatal criado por cima, pela negocia­ção entre Estados, sob a batuta de três ou quatro potências – tudo nas costas e perante a apatia das massas. Construção de cúpula animada pelos mais poderosos grupos capitalistas da Europa e por eles imposta às burguesias menores e aos povos no seu conjunto – a natureza intrínseca da UE está no pólo oposto da democracia e do progresso social.

Como facilmente se entende: à medida que este novo projecto capitalista de grandes proporções tenta levar por diante as suas aspirações económicas, políticas e militares, mais insuportáveis se lhe tornam as resistências localistas das burguesias menores e sobre­tudo a recusa do proletariado e das massas de cada país europeu a perder aquilo que ainda conservam do passado. Para a UE avançar, precisa de derrotar essas resistências. Um superestado poderoso tem que ter o maior dinamismo económico, a maior rentabilidade do capital e o maior poderio militar. Para alcançar o alvo da Agenda de Lisboa – fazer da UE “a região mais competitiva e mais próspera do mundo”, isto é, sem meias pa­lavras, destronar os EUA como superpotência – há que “actualizar” o regime político.

A fascização europeia que hoje se projecta às claras só parece impossível e absurda aos que a imaginam pelo velho modelo das arengas de um fuhrer tresloucado e das marchas em passo de ganso. Eminentemente moderna, ela não terá nada que ver com essas formas arcaicas; nem mesmo com os neofascismos das últimas décadas, mais ou menos folclóricos porque marginais.

O seu poder tremendo vem-lhe do facto de ela corresponder exactamente às necessidades dos grandes conglomerados finan­ceiros e industriais, que são a alma da União. Ela brota diariamente, naturalmente, da dinâmica dos capitais em luta pela rentabilização máxima, pela conquista de mercados e territórios, pela vitória sobre os rivais. E pode tirar partido das novas tecnologias da comunicação e da informação, dos novos armamentos, das novas técnicas de vigilância, de repressão e de condicionamento das massas. Hoje já não é preciso suprimir por decreto a liberdade de informação, a liberdade partidária e sindical, as eleições, porque os recursos mo­dernos permitem tomar esses talismãs da democracia simplesmente inoperantes, esvaziá-los, pervertê-los. Hoje, graças ao monopólio dos meios de comunicação, a burguesia pode justificar todas as medidas antiproletárias, antipopulares, repressivas, xenófobas, de pilhagem do Estado pelas multinacionais, invocando sempre solene­mente o “Estado de direito democrático” e a “sociedade livre e pluralista”. Como faz, em forma mais avançada, a sua irmã-rival dos EUA. E com os olhos nesse exemplo, aliás, que as burguesias europeias se vêm aplicando desde há décadas, agora mais estimu­ladas ainda pelo álibi da “guerra ao terrorismo”.

Para já, uma coisa parece evidente: o que a esquerda tem feito até agora para combater o projecto fascista-imperialista da UE são cócegas. Na sua esmagadora maioria, os partidos que falam em nome dos interesses populares, e que na realidade exprimem a tacanhez e o desnorteamento das classes médias, decidiram jogar na carta das instituições. Acham que opor-se a um projecto tão poderoso não tem futuro e que o melhor é entrar no barco, para “corrigir o rumo”. Encantados por terem assento no “Parlamento Europeu”, dedicam-se a reclamar uma “Europa social”, pedem moralização, discutem frivolidades, embolsam subsídios. Só não falam do essencial – do gigantesco desafio que representa derrubar pelo levantamento das massas esta etapa suprema e mortífera da concentração capitalista. Será preciso que o ponto de vista comunista cristalize finalmente em partidos capazes de se lançar à tarefa.

Política Operária nº 96, Set-Out 2004

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