Grande poder de encaixe!

Francisco Martins Rodrigues

Acusações de guerra química que teria sido praticada pelo exército português em Moçambique são mantidas em segredo durante 21 anos, graças à intervenção de Costa Gomes. E quando finalmente surgem à luz do dia, ninguém tem nada a dizer!

Divulgou o Público de 10 de Setembro um relatório das Nações Unidas, já com 21 anos de existência mas até agora ignorado no nosso país. Nele se lança sobre o exército português a suspeita de ter assassinado, por envenenamento da água, cerca de mil pessoas em Moçambique, numa área então controlada pela guer­rilha da Frelimo, no distrito de Vila Pery. O crime teria sido cometido em Setembro ou Outubro de 1973. As autoridades coloniais atribuí­ram na época as mortes a um surto de cólera mas a rapidez com que a pretensa epidemia desapareceu tal como surgira (72 horas) levantou suspeitas nos médicos.

Uma comissão formada logo depois pela ONU para investigar esta e outras acu­sações de crimes de guerra em Moçambique concluiu, com base no interrogatório a dezenas de testemunhas, haver fortes suspeitas de que as mortes em Vila Pery teriam sido provocadas por envenenamento da água. E mais: que as forças armadas portuguesas estariam a usar armas químicas, bactereológi­cas, ou a experimentar al­guma substância química nova em Moçambique. Isto para além dos testemunhos esmagadores sobre massacres, de que Wiriamu (16 de Dezembro de 1972) foi apenas um caso. A concluir, o relatório falava em “política de genocídio” de Por­tugal em Moçambique.

Por extraordinário que pare­ça, o relatório não foi tornado público a pedido do então presi­dente Costa Gomes, o qual invocou junto da Comissão de Descolonização da ONU a deli­cadeza das negociações que de­corriam para o reconhecimento da independência das colónias. Hoje ainda, o marechal assume a ocultação do crime: “O docu­mento estava fora do contexto e podia estragar tudo”, diz, com a sua proverbial candura. Quer ele dizer que os mil mortos de Vila Pery estavam “fora do contexto” dos seus jogos políticos.

Esta notícia saiu a 10 de Setembro num grande diário nacional. Estamos em campanha eleitoral, num período em que teoricamente se deveriam de­bater os grandes problemas políticos nacionais. Contudo, à excepção da carta dum oficial, saída dias depois no mesmo jornal, um silêncio total acolheu a explosiva revelação. O governo, no que respeita a África, só se ocupa de negócios. O presidente da República não achou neces­sário exercer neste caso o seu “direito à indignação”. Os parti­dos, ocupados nas tricas eleiçoeiras, não caíram na asneira de “desviar as atenções” para assuntos de somenos. …A não ser que todos, presidente, governo, partidos, achem “deselegante” confrontar os altos comandos com uma acusação de crime contra a humanidade…

Se a jornalista que enviou a notícia de Nova Iorque esperava provocar uma tempestade com as suas revelações, deve a esta hora estar desiludida. Subestimou o poder de encaixe desta demo­cracia de negreiros.

Política Operária nº 51, Set-Out 1995

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