Os últimos anos de Bukharin

Francisco Martins Rodrigues

Para o chamado “espírito de­mocrático” reinante, a história do Grande Terror na URSS de Staline é assunto esgotado. A razão democrático-burguesa, segura dos seus valores e da sua virtude, não vê na­da de especial a inquirir nesse fenó­meno: totalitarismo produz terror, seja ele de direita ou de esquerda, Staline é o avesso de Hitler, ponto final.

O pensamento comunista, po­rém, não pode deixar-se aprisionar nestes estereótipos. Tem que procu­rar entender a natureza de classe específica do terror stalinista, para chegar à sua lógica interna. Em vez de se entregar a maldições anti-stalinistas, jurando que não sabia, como agora fazem os que precisam de ganhar o perdão dos seus peca­dos passados, tem de pôr a nu as relações de classe que produziram o fenómeno stalinista e que torna­ram o apoio dos trabalhadores e progressistas à URSS não só admissível como necessário num determinado período histórico. É uma tarefa que diz respeito aos co­munistas, e só a eles; devemos pros­segui-la com tenacidade, sem nos deixarmos intimidar pela punição que o pensamento oficial reserva aos que insistem em caminhar com o passo trocado, calúnias, silenciamento, marginalização.

Para limpar a memória de Bukharine das acusações infamantes com que foi insultado pelo poder stalinista, o historiador soviético Roy Medvedev evoca no livro Os últimos anos de Bukharin (Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980) os últimos dez anos da vida desse diri­gente bolchevique; mostra a integri­dade do seu carácter, a dedicação ao regime que o leva a sujeitar-se ao lento processo de execução moral que acaba na execução pura e sim­ples, quando poderia ter fugido para o Ocidente (esteve em França, em missão oficial, não muito antes de ser acusado).

Parece contudo altamente duvi­dosa a tese do autor, de que Bukharine não teria efectivamente conspi­rado contra o poder stalinista. E não precisamos de o ver como um ingénuo filósofo fora da política – coisa que ele nunca foi – para con­denarmos a maquinação do proces­so em que foi envolvido. Precisamente, o ponto mais enigmático do processo, a confissão final de Bukharine, só adquire sentido se o vir­mos como uma confissão real: sim, diz Bukharine, falei contra Staline com A, B e C, mas não conspirei para matar ninguém. Nessas cons­pirações, Bukharine procurava uma alternativa para o governo di­tatorial de Staline, por ver, como tantos outros, que ele conduzia à liquidação de todos os restos da democracia soviética dos anos 20. Mas na URSS de 1937, na histeria de uma “revolução” sobre-humana cercada do exterior e do interior, de um poder frágil, à beira da guerra mundial, toda a dissidência conti­nha em potência as raízes dum crime.

Por outro lado, o livro tem já duas décadas e ressente-se disso. Ao escrevê-lo, Medvedev estava ain­da sob o efeito do choque “reabilitador” causado pelas revelações de Kruchov no XX Congresso: se as acusações de “espião” e “cúmplice do nazismo” contra Bukharine fo­ram forjadas pelo tribunal às ordens de Staline a fim de desacre­ditar as suas ideias políticas, não seria isto a prova de que era ele que tinha razão e que a política por ele defendida era a mais adequada para a URSS dos anos 30? Dificilmente se pode hoje acompanhar este ra­ciocínio, que assenta no pressu­posto – irrealista, sabemo-lo agora – de que houvesse um caminho para o socialismo na URSS. Não havia, e por isso mesmo as propostas anta­gónicas de Staline, Trotsky, Bukha­rine se combatiam com tanta fero­cidade, por isso eram todas elas unilaterais e desembocariam em qualquer caso no desastre.

A luta política de final dos anos 20 que põe termo à NEP e dá início à “segunda revolução”, à “passa­gem vitoriosa ao socialismo”, é dis­so o melhor exemplo. Tinha razão Bukharine quando observava (aliás, inspirando-se em Lenine) que era loucura querer avançar pa­ra o socialismo fazendo a guerra aos camponeses, a 80 por cento da população do país, e que nessa aventura se perderia a democracia soviética. Mas também tinha razão Staline – e é o que Medvedev não entende – quando respondia que, a não esmagar o capitalismo campo­nês, a não dar um salto para a in­dustrialização e a colectivização agrária, o regime soviético se afun­daria a curto trecho na restauração burguesa ou esmagado pelas potên­cias imperialistas. A acusação de “desviacionismo de direita” lança­da contra Bukharine a partir de 1930 não foi pois uma invenção ma­lévola de Staline, fruto do seu “es­pírito tortuoso” – mas a conclusão que se impunha aos que queriam romper para diante com o regime, pela via que fosse possível. Nem foi por hipocrisia que Bukharine reco­nheceu no XVII Congresso que o seu grupo “acabara por se transformar inevitavelmente no pólo de atracção de todas as forças que lutavam con­tra a ofensiva socialista, em primei­ro lugar sectores de kulaks e os seus ideólogos entre os intelec­tuais”.

Reabilitar a visão “humanista moderada” de Bukharine, como Medvedev faz até certo ponto neste trabalho, é um empreendimento que só pode interessar à social-democracia; do mesmo modo seria insen­sato tentar demonstrar a “justeza” da linha de Staline, quando se co­nhecem todas as consequências que acarretou. A única coisa que pode­mos dizer, hoje, é que as alterna­tivas apresentadas por um e pelo outro reflectiam o impasse histórico com que chocara a revolução russa. Nenhuma das políticas em confron­to podia impedir a marcha do capi­talismo no país. Todos tinham ra­zão contra todos, o que quer dizer que ninguém tinha razão. Só que a via defendida pelo moderado Bu­kharine teria acarretado custos hu­manos provavelmente superiores aos provocados pela via stalinista, com todos os horrores que esta significou. E isto não quer admitir o pensamento democrático burguês.

De qualquer modo – perguntam-nos – como puderam comunis­tas degenerar ao ponto de se lançar no carrossel infernal das acusações caluniosas, dos processos forjados, das torturas, dos julgamentos mon­tados, das deportações em massa, dos fuzilamentos de inocentes? Se a ideologia comunista pode produ­zir tais monstruosidades, não deve­mos opor-nos a ela, do mesmo modo que nos opomos à ideologia fascis­ta? A pergunta, contudo, está mal colocada. O que devemos perguntar é: que tipo de conflito social fez evoluir o corpo dirigente da URSS da sua anterior postura comunista e revolucionária para o entrincheiramento implacável no poder? Che­gada a sociedade russa no fim dos anos 20 ao dilema inapelável – avançar para o capitalismo pela via estatal ou pela via privada -, os comunistas deixaram de ser comu­nistas. Transformado em autocra­ta, Staline eliminou o seu antigo camarada, transformado em demo­crata burguês.

Política Operária nº 80, Mai-Jun 2001

 

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