Mitos do 18 de Janeiro*

Francisco Martins Rodrigues

Não me atreveria a comentar a entrevista de Fátima Patriarca ao Público (2/9/2000, suplemento “Leituras”) se o meu nome não fosse chamado à baila, a certa altura, como inven­tor do “mito do soviete da Marinha Grande”, durante o movi­mento operário de 18 de Janeiro de 1934.

Diz F. P.: “O mito do soviete é serôdio: só lhe encontro uma referência de três linhas num texto de meados dos anos 60 de Francisco Martins Rodrigues”. Mas se a ilustre investigadora conhece o texto do dirigente comunista José Gregório, um participante na revolta, sabe que a menção do soviete já aí vem. No relato de Gregório “Sobre a associação e o movimento do operaria­do vidreiro” refere-se, a propósito da manifestação popular que se seguiu à tomada do posto da GNR pelos operários: “Os vivas repetiam-se… Gritava-se: ‘Vamos abrir o sindicato! Vamos nomear o soviete!’…” E mais adiante comenta que se criara a convicção “entre os comunistas e outros militantes destacados da classe operária de que o único caminho que se apresentava era somente o da insurreição, o da implanta­ção do regime soviético”. Portanto, se houve mito, foi aí, na Marinha Grande, no próprio dia 18 de Janeiro de 1934, que ele se originou; F. P. deveria tê-lo referido, em vez de o atribuir a uma “serôdia” invenção minha.
 
Naturalmente, esse negregado soviete não pode ter tido existência real, visto que, imediatamente a seguir, a vila em revolta foi atacada pelo exército e os operários, após breve e desesperada resistência, foram presos e mandados para o degredo. O soviete ficou apenas como uma intenção, um projecto dos operários marinhenses, projecto mesmo assim tão extraordinário e electrizante que a história passou de boca em boca, durante décadas, nos relatos das prisões e da clandestinidade, onde a recolhi.
 
Mais importante do que a história do soviete é, porém, a espécie de ajuste de contas com a revolta da Marinha Grande a que F. P. se entrega ao longo da entrevista. Em sua opinião, o assalto operário ao posto da GNR e a constitui­ção de brigadas armadas não teve uma importância por aí além em comparação com as greves que nessa data eclodiram em Almada, Barreiro, Sines e Silves. Porquê então as parangonas da imprensa da época em torno da revolta dos operá­rios vidreiros? Aplicando-se a decifrar o “enigma”, F. P. che­gou à seguinte conclusão: o regime salazarista teria optado por “privilegiar as acções violentas em detrimento das pacífi­cas, realçar o papel dos comunistas, pondo na sombra as demais correntes…” porque, “mais do que as acções violentas, que acabam por ser extintas em dois tempos, as acções pací­ficas de greve, sem dúvida menos espectaculares, foram no entanto as que mais incomodaram o governo e que ele mais tentou silenciar.”
 
E aí temos a importância da revolta operária da Marinha Grande inflacionada pelo próprio regime com fins propagandísticos! De tal modo que o entrevistador (Adelino Gomes) pôde escrever em títulos garrafais: “Mitos e enganos do 18 de Janeiro. Na Marinha Grande não houve greve nem soviete nem bandeira vermelha”. E ainda: “A versão ‘canónica’ do 18 de Janeiro de 1934 teve como principais autores a impren­sa ‘burguesa’ e o governo, mas o PCP e a extrema-esquerda deram uma ajuda”. Graças a Fátima Patriarca podemos agora descobrir que fascistas e comunistas terão mitificado, cada um com os seus móbeis próprios mas em boa colaboração, um motim sem grande significado!
 
Tirou a distinta investigadora conclusões totalmente erra­das, em minha modesta opinião (o que talvez pudesse ter evitado se, para além da consulta aos jornais da época, tives­se ouvido pessoas ligadas ao acontecimento). Perante o 18 de Janeiro, a ditadura fascista de Salazar recorreu, como era norma sua, à receita infalível da “desordem” e do “papão comunista” para melhor obter a obediência da pequena bur­guesia recalcitrante e das massas atrasadas. Mas fê-lo tam­bém, e muito, porque a revolta armada da Marinha Grande veio revelar que os comunistas suplantavam os anarco-sindicalistas em matéria de eficácia na radicalização do movimento operário. E mais: eram capazes de orientar esse radicalismo no sentido de uma revolta armada com aspira­ções “soviéticas”, o que tinha que ser motivo de séria apreen­são para os adeptos da ordem estabelecida.
 
Obviamente, a repressão sobre os grevistas foi muito menor do que a que caiu sobre os insurrectos, não por ser mais difícil reprimir os grevistas (explicação bizarra quando nos lembramos da brutalidade com que foram reprimidas greves noutras ocasiões; recorde-se por exemplo o Barreiro em 1943), mas porque Salazar teve que optar, numa emer­gência grave como aquela, por concentrar a punição sobre o perigo principal.
 
É sem dúvida necessário destacar o papel das greves ocorridas nesse dia, tradicionalmente subestimadas pelo PCP devido a terem sido conduzidas pelos anarco-sindicalistas. Mas tornou-se habitual de há uns anos para cá, neste como em outros episódios da resistência, chamar a primeiro plano a intervenção dos anarco-sindicalistas para minimizar o papel dos comunistas. Troca-se uma deformação por outra. E com frequência, no entusiasmo desta onda “rectificadora”, avolu­ma-se a intervenção muitas vezes negligenciável de republica­nos ou socialistas. Em nome do combate aos mitos” fabricam-se mitos. Não será por acaso que F. P., remetendo a Marinha Grande ao seu lugar, invoca uma “componente militar e republicana” do 18 de Janeiro que comunistas e “esquerdis­tas” teriam até hoje escamoteado. Ora, se é um facto averigua­do que havia da parte dos operários grande expectativa nessa “componente” também é um facto que ela não se manifestou. F. P. não consegue apresentar outras provas além de algumas conversas de alguns militares com os ope­rários, antes da revolta.
 
Resta-me dar o meu contributo para esclarecer o enigma da animosidade da ilustre investigadora do ICS para com o papel do PCP e dos operários da Marinha Grande no 18 de Janeiro. Ela inscreve-se numa tendência forte do pensamento social-democrata, alimentada, ao que me parece, por duas secretas incomodidades. Primeira: os socialistas querem fazer esquecer que andavam a negociar com a ditadura a sua legalização na mesma altura em que os operários fizeram greve e se revoltaram. Segunda: na Marinha Grande os operá­rios armaram-se com as espingardas obtidas no assalto ao posto da GNR e proclamaram um poder que, mesmo simbó­lico, momentâneo, infantil se se quiser, conserva, passados três quartos de século, já em plena Democracia, uma forte carga subversiva.
 
[*] Este artigo de Francisco Martins Rodrigues foi publicado no jornal Público, suplemento Leituras, de 4 de Novembro de 2000.
 
 Política Operária nº 77, Nov-Dez 2000
 
Na foto: Famílias dos presos da Marinha Grande numa manifestação junto ao Governo Civil de Leiria, em 1935, pedindo a sua libertação

Deixe uma Resposta

Preencha os seus detalhes abaixo ou clique num ícone para iniciar sessão:

Logótipo da WordPress.com

Está a comentar usando a sua conta WordPress.com Terminar Sessão /  Alterar )

Facebook photo

Está a comentar usando a sua conta Facebook Terminar Sessão /  Alterar )

Connecting to %s