Tanto barulho por tão pouco

Francisco Martins Rodrigues

Mais uma vez derrotados os “renovadores”, a corrente Carvalhas prossegue sem alarido a renovação permanente do PCP. Com a bênção de Cunhal.

 A decepção é o sentimento dominante nos meios “democráticos” perante os resul­tados do XVI Congresso do PCP. Intoxica­dos pelo frenesi da sua própria campanha, muitos políticos e comentaristas afec­tos ao PS tinham acabado por se convencer de que estaria em curso no PCP uma cisão de grande envergadura ou mesmo uma revi­ravolta anticunhalista. Afinal, assente a poeira das proclamações e denúncias, constata-se que Cunhal não só não recuou como conseguiu anular as cedências a que tinha sido forçado no ultimo congresso, com o “Novo Impulso”.

Habituados a avaliar a luta partidária em termos do confronto entre “barões” e “clãs”, como é o caso do PS, PSD e PP, os observadores subestimaram, mais uma vez, a compacta base de apoio de que goza o cunhalismo. Bastou aos dirigentes apelar ao partido profundo para meter na ordem sem grande dificuldade os contestatários. Sujeitos a duas décadas de discriminação, calúnias e acintosa má-fé, os membros do PCP entrincheiram-se em bloco na defesa da sua identidade de cada vez que adivi­nham o perigo de uma rendição ao PS.

A Carlos Brito, Edgar Correia e acompa­nhantes abrem-se agora duas alternativas possíveis: ou seguir o caminho clássico da emigração para as águas socialistas, em bus­ca do reconhecimento das suas aptidões políticas, ou remeter-se a uma penosa “tra­vessia do deserto”. Mas isto não significa que a sua luta tenha sido em vão, como não o foi a dos Judas, Vital, Barros Moura, Zita; a função dos “renovadores” tem sido a de acelerar, embora por vezes com algu­ma inabilidade, a integração do PCP nos limites da política burguesa.

Na confusão das polémicas, muitos não se dão conta de que, a cada luta vitoriosa “contra a social-democratização”, o PCP vai-se deslocando, lenta mas seguramente, e em massa, para o terreno da social-democracia. Adversários de qualquer precipita­ção suicida, os cunhalistas são contudo adep­tos desse movimento. Sem estardalhaço, sem rupturas traumatizantes, eles vão fazen­do gradualmente a reciclagem e adaptação do partido aos novos tempos, de tal modo que o PCP actual já está muito distante do de há vinte anos (que, por sua vez, já tinha feito uma grande deslocação para a direita desde os tempos da resistência ao fascismo). No parlamento, na União Europeia, nos sindicatos, nas autarquias, os eleitos do PCP têm feito o seu tirocínio, aprendido a negociar com os outros partidos, a integrar-se na “política real”, a mostrar um “espírito responsável”.

Então porque se encarniça a imprensa contra Cunhal? Por ele ser obreirista, radi­cal, leninista? Não brinquemos. Só num meio tão conservador e tacanho como é o nosso ainda pode Cunhal passar por revolu­cionário. Cunhal tem sido toda á sua vida um talentoso representante da democracia pequeno-burguesa, que soube adaptar o seu reformismo, primeiro, às condições específi­cas da luta antifascista, depois, à crise de poder de 74-75 e por fim à democracia novembrista. O traço típico do cunhalismo é a sua capacidade para tocar a corda sensí­vel dos militantes com uma linguagem de tons radicais a servir de capa a uma política de integração nas instituições e de oposição resoluta ao perigo de derivas revolucioná­rias, o chamado “sectarismo”.

Se, apesar disso, os analistas atacam Cunhal como incorrigível “ortodoxo” é, por um lado, por pura obtusidade, por aquele pavor à “indisciplina social” que ficou grava­do nas mentes burguesas desde o tempo de Salazar; basta que oiçam a palavra “comu­nismo” ou entrevejam a bandeira vermelha para já não serem capazes de reflectir. José Manuel Fernandes, por exemplo (no Públi­co de 11/12), refere como prova “extraordi­nária” do apego de Cunhal aos “mitos da luta de classes”, a sua observação, todavia óbvia, de que os cidadãos Melos, Espírito Santo e Belmiro são exploradores de outros cidadãos. Não é preciso muito, neste país, para se passar por extremista…

Mas não é só de ideologia que se trata. Há nesta campanha anti-Cunhal uma batalha política em causa. Cunhal é o é o chefe de fila de uma corrente de denominação comunista mas na realidade social-democrata, que não se reconhece nem na tradição, nem na linguagem, nem na base social, nem no estilo de partido do PS e que insiste em defender a sua existência autónoma. Os so­cialistas, naturalmente, não o toleram e não desistem de aliciar militantes do PC para o seu lado. Em resposta, os cunhalistas casti­gam os trânsfugas… e dispõem-se a fazer mais um pequeno passo para a direita.

A isso se resumiu, no fim de contas, o fo­lhetim deste congresso.           

Política Operária nº 77, Nov-Dez 1977

 

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