A crise do regime

Francisco Martins Rodrigues

 O ministro Cravinho, desnorteado com as denúncias de corrupção na JAE, dispa­rou que “há uma gravíssima crise do regi­me democrático”. Logo Marcelo subiu a parada: vivemos o “apodrecimento” e a “degradação da autoridade do Estado”. Pegando na deixa, Jorge Sampaio ofereceu-nos no 5 de Outubro fúnebres considera­ções e piedosos conselhos sobre a perda de credibilidade dos políticos e da política.

É sabido que os políticos não resistem à dramatização das suas chicanas, para despertar a atenção do público e para su­bir uns pontos nas sondagens, mas há aqui alguma coisa mais. Já não se pode ocultar a desconfiança dos governados face aos governantes, o profundo mal-estar da soci­edade em relação ao regime. E isto não apenas pela catadupa dos escândalos de corrupção, pelo negócio do financiamento dos partidos, ou pela golpada fracassada da regionalização.

Na origem da crise do regime estão três causas entrelaçadas que os políticos não têm meios de atalhar.

Primeira. Os governos perderam todo o crédito junto dos cidadãos porque se mete pelos olhos dentro que transferiram o seu poder para Bruxelas e se limitam a cum­prir ordens vindas de cima. PS, PSD, PP são mercenários vulgares e não adianta trocar uns pelos outros.

Segunda. A ficção da “defesa do bem comum” torna-se motivo de chacota quan­do toda a gente vê que as grandes decisões políticas partem dos mercados financeiros e das multinacionais. Justamente, a emer­gência dos juízes como um pretenso poder incorruptível corresponde a uma reacção de defesa dum regime desacreditado pela sua subordinação ao alto negócio.

Terceira. Se o país está a desenvolver-se, se a economia cresce, como se justifica o alargamento do fosso entre pobres e ri­cos? Dois milhões de pobres, num país de dez milhões que se insere garbosamente na Europa avançada, é algo que toda a re­tórica de Guterres não chega para fazer esquecer. E aí entra em cena aquilo que o dr. João Carlos Espada chama a “inveja”.

Confortam-se os avestruzes da política com a ideia de que as coisas não devem estar assim tão más, visto que não há sin­tomas de agitação social. Mas a actual paz podre é enganosa, porque assenta sobre factores conjunturais: o silenciamento tem­porário do proletariado, em fase de recon­versão, e a ampliação da pequena burgue­sia e da sua capacidade de consumo.

Basta que se interrompa o actual ciclo económico (e as nuvens negras já se aden­sam) e os factores de crise que trabalham subterraneamente o regime virão à luz do dia. Na hora da verdade, os políticos deste tempo de enganos aparecerão reduzidos à sua dimensão desprezível e a política reto­mará os seus direitos, como busca de uma ordem social digna de seres humanos.

Política Operária nº 67, Nov-Dez 1998

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