“Comunismo sem fronteiras”. Quando Cunhal aplaudiu a invasão da Checoslováquia

Francisco Martins Rodrigues

 Disse Cunhal numa entrevista recente que não acredita no comunismo sem fronteiras. Quanto a ele, isso é coisa “só lá para os tetranetos”. Não vamos fora desta ideia. Mas, vinda de Cunhal, a opinião é curiosa, pela mudança radical que revela. Com efeito, quando há trinta anos os exércitos de Moscovo invadiram a Checoslováquia, Álvaro Cunhal aplaudiu calorosamente, sob o argumento de que o socialismo não conhecia fronteiras.

 A 21 de Agosto de 1968 as tropas da URSS e de outros países “aliados” entravam na Checoslováquia para “meter na ordem” o governo de Dubcek cujas iniciativas reforma­doras suscitavam esperanças alvoroçadas no Ocidente e alar­me em Moscovo. 0 gesto brutal desacreditou o novo clima de “distensão” e “coexistência” que a direcção russa tentava criar. “O pacto de Varsóvia, observaram com razão os alba­neses, passou de tratado de defesa contra a agressão impe­rialista a um tratado de agressão contra os próprios países socialistas”. Mesmo entre as mais fiéis apoiantes da política da URSS, a agressão causou embaraço e perplexidade. A situação na Checoslováquia era instável e confusa mas não se vivia uma subversão das instituições, como fora o caso da Hungria, doze anos antes.

CUNHAL PREMIADO POR BREJNEV

Álvaro Cunhal é que não teve dúvidas, talvez porque, instalado em Moscovo, tinha acesso aos bons argumentos.

0 PCP ganhou a honra pouco invejável de ser, em todo o mundo, o primeiro partido a apoiar sem reticências a ocu­pação militar da Checoslováquia. 0 Comité Executivo do CC emitiu de imediato, a 23 de Agosto, um comunicado de apro­vação. Logo a seguir, numa Declaração, o Comité Central do PCP, voltando a aplaudir a invasão, afirmava que “o princí­pio da soberania tem sido por alguns considerado de forma abstracta e exclusivamente jurídica, fora dum ponto de vista de classe e internacionalista”. “O PCP entende que os marxistas-leninistas não podem contestar em prin­cípio a legitimidade revo­lucionária de uma inter­venção de países socialistas noutros países socialistas a fim de defenderem as conquistas do socialismo”.

De resto, já na conferência que em Junho reunira os partidos seguidores da URSS, Cunhal justificava antecipadamente a invasão ao afirmar: “Se por agressão do imperialis­mo ou por acção das forças contra-revolucionárias o poder dos trabalhadores estiver ameaçado num país socialista, é dever sagrado dos demais países socialistas e do movimen­to operário internacional acorrer em sua defesa”.1 Desconta­da a referência ao “poder dos trabalhadores”, pura questão de estilo, era um aval franco à intervenção russa em qual­quer país “desobediente”.

0 prémio por esta fidelidade veio poucas semanas de­pois, a 23 de Setembro, com uma audiência especial conce­dida por Brejnev a Cunhal, na qual foi registada a “plena identidade de pontos de vista dos dois partidos.2” Com no­tável desfaçatez, o comunicado do encontro não fazia qual­quer referência à ocupação da Checoslováquia, ocorrida apenas um mês antes! Não é de estranhar que, a partir daí, Álvaro Cunhal passasse a ser elogiado por Moscovo como “eminente marxista-leninista”…

Sabendo-se hoje no que deram as tais “conquistas do socialismo” na Checoslováquia como na URSS, há motivo pera perguntar se Cunhal não deveria ter uma palavra de autocrítica na passagem do 30º aniversário da agressão russa. Mas o farisaísmo das suas solenes declarações de princípios já se tornou proverbial.

ALEMANHA NO EPICENTRO DA CRISE

Nesse Verão de 1968, Cunhal sabia como ninguém que fora a própria URSS a acelerar a crise checoslovaca ao forçar a substituição do “stalinista” Novotny pelo “refor­mador” Dubcek. De facto, em Janeiro, Novotny fora pressionado para sair de secretário-geral do parti­do comunista, por se opor às reformas econó­micas visando a introdu­ção de mecanismos do mercado. Para os russos, a Checoslováquia surgia nessa época como um útil banco de ensaio da “destalinização” tentar rejuvenescer o poder da burocracia do Partido-Estado com uma abertura controlada ao capitalismo privado. Queriam experimentar num pequeno país aquilo que ainda não se atreviam a pôr em prática.

Mas os russos queimaram-se no seu próprio jogo. Não previram a dinâmica imparável que iria assumir a “liberali­zação” num país com uma tradição burguesa fortemente enraizada. Rapidamente, as reformas checoslovacas come­çaram a transbordar para além dos limites fixados por Moscovo: multiplicação de associações e jornais, libertação dos que antes haviam sido condenados como contra-revolucionários, contestação da autoridade do partido comunista, sinais de abertura ao Ocidente…

O que isto punha em causa eram interesses económicos e vínculos militares. Os “superiores interesses do socialismo”, solenemente invocados tanto por Moscovo como por Praga, não passavam de uma imagem de retórica. Devia a Checoslo­váquia continuar a fazer parte da “esfera de influência” re­conhecida a Moscovo pelo Ocidente desde o fim da guerra mundial, ou chegara a hora de bascular para o campo do “mundo livre”? Esta era a questão.

E isto não tanto pela Checoslováquia em si como pela questão alemã. Quem se apercebeu com lucidez da cartada foram mais uma vez os albaneses: “A grande partida que se joga na Europa é a unificação da Alemanha. Este é o objec­tivo tanto de Bona como do imperialismo norte-americano. Ambos se esforçam por que a República Democrática Alemã seja liquidada sem guerra. A eliminação da RDA do mapa da Europa e a criação do novo Reich constitui o epicentro a partir do qual se visa liquidar a influência soviética sobre os seus satélites europeus e incentivar a aproximação des­tes a Bona.”3 Na Checoslováquia jogava-se um episódio do leilão da RDA, que viria a consumar-se vinte anos mais tar­de, quando a Rússia já não teve forças para resistir à pres­são do imperialismo ocidental.

CRÍTICA LIMITADA

Naquela época, a esquerda comunista, representada pe­los “pró-chineses” e “pró-albaneses”, teve o mérito de denun­ciar com igual vigor a farsa liberal burguesa do “socialismo de rosto humano” de Dubcek e a odiosa ocupação militar russa. Contudo, a corrente marxista-leninista estava ainda apegada ao mito de que teriam existido na URSS e na Euro­pa Oriental regimes de ditadura do proletariado e de que se estava perante um “retrocesso ao capitalismo”. Escapava-lhe a natureza de capitalismo de Estado desses regimes desde a origem (como aliás dos da China e da Albânia) e a sua incontrolável tendência para evoluir para o capitalismo

Daqui resultava a incapacidade para explicar cabalmente os fenómenos do “stalinismo” e da “destalinização” e concretamente o caso checoslovaco. Se punha o dedo na ferida quando denunciava o entusiasmo dos estudantes e da intelectualidade, pelas reformas como manifestação pequeno-burguesa social-democrata, não tinha explicação para a inércia do proletariado quando teoricamente esta­riam a ser atacadas as “conquistas socialistas”.

Deste modo, entre a cínica campanha ocidental em defesa da “Primavera de Praga” e o hipócrita argumento russo da “defesa do socialismo”, a posição dos comunistas de es­querda não ganhou poder de convicção junto dos trabalha­dores. Com poucas excepções, os operários avançados do nosso país deixaram-se iludir pela demagogia do PCP e fo­ram levados a aprovar a ocupação russa da Checoslováquia corno um acto anti-imperialista. Quem não tinha dúvidas sobre o que realmente estava em jogo era Álvaro Cunhal.

NOTAS

  1. Avante nº 404, Julho 1968.
  2. Avante nº 408, 2ª quinzena Outubro 1968.
  3. Enver Hoxha ao CC do PTA, 5 de Setembro de 1968, Obras Escojidas, tomo IV, p. 502, Tirana, 1983.

Política Operária nº 66, Set-Out 1998

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