O “Livro negro do comunismo”

Francisco Martins Rodrigues

Em matéria de ditaduras e massacres ao longo deste século, as democracias capitalistas não ficaram atrás do totalitarismo comunista.

Chegou a Portugal a agitação em torno do “Livro negro do comunismo” (ver Visor, P. O. nº 62). Embora demarcando-se do fundamentalismo fascizante de Courtois, a generalida­de dos comentadores concorda em acusar o comunismo de uma tremenda onda de crimes, “a pior tirania de sempre”, “por ter pretendido instaurar pela força um paraíso utópico”. A debilidade mental destas opiniões, hoje aceites como indis­cutíveis, merece algumas notas.

  1. As convulsões sociais que abalaram a Rússia e o Orien­te ao longo deste século assinalam a entrada no capitalismo de vastas regiões atrasadas, cuja evolução fora bloqueada pelo ascenso do imperialismo. Estancada a formação gradual de uma burguesia nacional autónoma, a acumulação primi­tiva do capital foi feita por via estatal, recorrendo a uma repressão em massa. Aliás, se a constituição do capitalismo europeu exigiu séculos de ferozes guerras internas e a con­quista de outros continentes, se na América do Norte teve de se alimentar do genocídio dos índios e da escravatura dos negros, muito estranho seria que na Rússia e na China, feita a marchas forçadas, sob o cerco e as agressões das grandes potências, não fosse acompanhada por enormes catástrofes e actos de barbárie. Seja como for, o que está aqui em causa não é o socialismo mas um novo episódio da expansão mundial do capitalismo.
  2. Acusa-se Lenine e os bolchevistas por terem tentado “forçar uma revolução operária quando sabiam que não havia condições para o socialismo”. É uma grosseira falsificação da história.

A Rússia (como a China) estava grávida da revolução desde o começo do século. Perante a demonstrada incapaci­dade da burguesia para proceder às transformações inadiá­veis, a classe operária foi projectada para primeiro plano. Os comunistas intervieram, não como promotores da revolu­ção (ideia absurda, digna de um Salazar), mas como consciên­cia de um gigantesco movimento social em marcha.

O que agora se condena como ultraje à democracia é que a classe operária tenha surgido nesta revolução (burgue­sa) com objectivos próprios, organizada num partido próprio,

Para o Livro Negro das Democracias

A propósito do clamor de aplauso que se levantou em França em torno do “Livro negro do comunismo”, o escritor Gilles Perrault traçou no Monde Diplomatique de Dezembro um primeiro esboço do “Livro negro da França”:

“Passados tantos anos, os números são aproximados e dão apenas uma ordem de grandeza. Para a repressão de Sétif (Argélia) em 1945, os cálculos vão de 6.000 a 45.000 mortos. Em 1947, em Madagáscar, terá havido 80.000 vítimas. Na Indochina, entre 1946 e 1954, os números variam conforme as fontes, de 800.000 a 2 milhões de mortos. Na Argélia (1954-62), de 300.000 a 1 milhão. Mesmo sem tomar em conta as repressões na Tunísia e em Marrocos, mesmo abstendo-nos de evocar as responsabilidades francesas em catástrofes mais recentes, como o genocídio no Ruanda, esta contabilidade sinistra atesta que a França ocupa o pelotão da frente entre os países massacradores da segunda metade do século. E tem demonstrado tal obstinação que um observador externo poderia concluir que o crime é parte integrante do regime político em vigor.”

em vez de se limitar ao papel tradicional de força de choque domesticada. É essa organização da classe operária em parti­do, intolerável para a burguesia, que se apelida de “golpe de Outubro”.

Ao pulverizar toda a velha sociedade até aos alicerces, e sobretudo ao romper o cordão de protecção estabelecido ao longo de séculos pelas classes possuidoras e desmantelar o regime de propriedade privada, os operários russos agiram como poderosas forças de progresso e permitiram entrever em esboço uma nova organização social para além do capita­lismo. Se era muito cedo para realizar as suas aspirações socialistas, isso não impediu o acto precursor de Outubro de ficar como referencial do pensamento avançado deste século.

3. As novas “revelações” sobre o terror revolucionário dos bolcheviques nos anos 1917-21 nada têm de novo e omitem cinicamente que essa foi a resposta defensiva do poder dos sovietes ao assalto feroz a que foi submetido. Tentam inspirar horror pela revolução, como um acto bárba­ro que teria vindo interromper a “normalidade”, quando na realidade ela pôs termo a uma situação intolerável para a grande maioria. Em matéria de revoluções, a burguesia só gosta de revoluções derrotadas; estaria hoje pronta a reco­nhecer grandeza aos bolcheviques se eles se tivessem deixa­do massacrar como os mártires da Comuna de Paris.

Nesta época de crise, de corrida ao domínio do mundo e de novas guerras coloniais camufladas em “operações de pacificação”, quer-se apagar da consciência dos operários e dos “escravos coloniais” o papel emancipador da Revolução Russa. Apelida-se de “fanatismo” e “irracionalidade” a abne­gação revolucionária, a fim de inculcar como “normal” a alienação individualista e a submissão acéfala à ordem burguesa.

4. Quer-se negar o direito à palavra aos comunistas implicando-os como corresponsáveis nas repressões em massa do chamado “socialismo real”. É uma dupla mistificação.

Em primeiro lugar, a ditadura do partido-estado, na Rús­sia, China, etc., nunca teve nada a ver com o socialismo nem com a “utopia comunista”; foi o desenlace inevitável de revoluções populares que deitaram abaixo a velha socie­dade mas não dispunham de base económico-social para ultrapassar a etapa capitalista. O Partido bolchevique de 1940 não é o de 1917, o regime “soviético” nada tem a ver com os verdadei­ros sovietes da revolução. Se a burocracia utilizou a teminologia marxista e a aparente continui­dade com o período revolucio­nário foi porque esse era um instrumento privilegiado para obter a submissão do proleta­riado no interior e a simpatia do proletariado no exterior.

Pela sua parte, apoiando o campo “socialista” enquanto ele foi um factor de desestabilização e de crise do imperialismo, o pro­letariado internacional seguiu uma táctica justa, embora estives­se iludido quanto à natureza des­ses regimes. Não tem de que pe­dir desculpa por ter lutado contra a sua própria burguesia e por ter confrontado o capitalismo com a aspiração ao socialismo.

5. Assimila-se o stalinismo ao nazismo para contrapor essas duas “variantes simétricas do totalitarismo” à virtuosa democracia.

A verdade é que, em matéria de ditaduras e massacres, as democracias capitalistas não ficam atrás do “totalitarismo comunista”. A diferença está em que este último exerceu a tirania sobretudo no seu território enquanto as democracias a exportaram (e continuam a exportar) para as regiões submetidas. Coreia, Vietname, Argélia, Indonésia, África ne­gra, América Latina, dão testemunho, só no último meio século, do que vale o “reinado da liberdade”. Quanto aos méritos do imenso matadouro da segunda guerra mundial podem ser repartidos por igual entre o nazismo e as democracias.

A campanha que visa atribuir às ditaduras pseudo-socialistas do Leste as mesmas manifestações bestiais de reacção que exibiu o nazismo, pretende tudo menos a verdade histó­rica; quer que se condene a origem popular desses regimes, os vestígios das suas criações avançadas, a ausência neles de uma classe capitalista organizada, 0 empecilho que repre­sentaram para 0 imperialismo. Quer impor a ditadura capita­lista como 0 único regime aceitável.

6. Ao excomungar mais uma vez os “crimes do comunis­mo”, o pensamento burguês pretende proibir a violência revolucionária e acenar com a miragem das reformas quando se torna evidente que os destinos da sociedade são governa­dos pela reprodução cega e automática do capital, insusceptí­vel de reforma. A burguesia nega, hoje como no passado, legitimidade à luta de classes, quer santificar a propriedade privada (a que chama “fonte da liberdade”!) e afirma grotescamente que a sua eliminação como classe seria um acto de “genocídio”, semelhante à supressão de uma nacionalidade ou de uma raça.

Em nome da defesa intransigente da “liberdade económica e política” quer garantir o triunfo final da barbárie capita­lista sobre o planeta e proscrever o direito à revolução. Mas não poderá impedir que a grande maioria condenada à não existência redescubra no comunismo a perspectiva de uma sociedade à medida dos seres humanos.

Política Operária nº 63, Jan-Fev 1998

A REVISÃO DA HISTÓRIA

Le livre noir du communisme. Crimes, terreur, re­pression. Stéphane Courtois, Nicolas Werth, Louis Mar­golin e outros. Ed. Robert Laffont, Paris, 1997.

A campanha de erradicação do co­munismo acaba de receber reforços fres­cos, por ocasião do 80º aniversário da revolução russa. O lançamento, com grande cobertura mediática, do “livro negro do comunis­mo” permitiu infor­mar a opinião públi­ca de que “os regi­mes comunistas erigiram o crime de massa em verdadeiro sistema de governo” e causaram a morte a 100 milhões de pessoas, nada menos. Está pois de parabéns a legião dos recuperados para o campo da ordem, que assim vê enriquecido o seu arsenal de argumentos para justificar a capitulação.

A ausência de qualquer valor científico deste novo trabalho académico evidencia-se desde logo por englobar sob a designação de “regimes comunistas” todos os que em algum momento se reivindicaram do marxismo-leninismo e amalgamar indistintamente autênticas revoluções populares com regimes opressivos de capitalismo de Estado que se cobriram com a sua bandeira.

Depois, os números. Cem milhões de mortos é cifra estarrecedora, mas Courtois não o faz por menos: 65 milhões na China, 25 na União Soviética, o resto por esse mundo fora. O processo é simples: põe-se à conta do comunismo as mortes causadas pelas insurreições populares e pela repressão dessas insurreições, as vítimas de fornes e outras catástrofes tudo calculado por alto. Adicionam-se assim os mortos de ambos os campos da guerra civil na Rússia, os mortos causados pela fome resultante do bloqueio à URSS (“é preciso estrangular a criança enquanto está no berço”, aconselhava com finura o jovem Winston Churchill), os mortos da fome de 1930-32, os mortos da repressão stalinista, os da guerra mundial; procede-se do mesmo modo quanto ã China, Vietname, Coreia, Camboja, Europa oriental, Etiópia, Angola, Moçambique (nestes dois países, os crimes incontáveis cometidos pela Unita e pela Renamo, pagos pelo imperialismo, são postos à conta dos regimes “comunistas” governantes)… Esta responsa­bilização dos revolucionários inclusive pelos mortos que sofreram não deixa de ter a sua lógica: se não tivessem interrompido a marcha normal da civilização burguesa, não teria sido necessário reprimi-los…

O golpe é de tal modo grosseiro que em Paris rebentou a polémica entre os próprios autores. Margolin e Werth criticam o prefácio e as entrevistas ultras de Courtois de que não tiveram conhecimento prévio; censuram-lhe “a obsessão de chegar aos cem milhões de mortos”; não aceitam que “o comunismo, que se pretende doutrina libertadora, seja posto no mesmo plano do nazismo, doutrina racista”; distinguem que “a URSS teve campos de concentração mas não campos de extermínio”. Courtois, porém, não cede: “Os comunistas são responsáveis por cem milhões de mortos, contra 25 dos nazis, e além disso começaram primeiro”. Não há dúvida; Hitler e Goering, se fossem vivos, felicitar-se-iam por esta adesão tardia à sua cruzada antibolchevista.

A demarcação de Werth e Margolin resulta, visivelmente, do receio de perderem todo o crédito se seguirem o anticomunismo primário de Courtois. Mas nada os distingue deste quanto ao desejo de banir a revolução. São todos unânimes em negar a Outubro de 1917o carácter de revolução social, rebaixando-o ao nível de um golpe de Estado, conduzido pelo “aventureiro” Lenine. Esta tese do “golpe”, difundida por uma série de obras de inspi­ração social-democrata, vai sendo aceite, na ausência de contes­tação, como verdade incontroversa. Registe-se, a este respeito, a posição particularmente abjecta do Humanité que, na edição de 7 de Novembro, tem o impudor de escrever: “Revolução social? Putsch de uma minoria bem organizada? Ambas as coisas? As controvérsias continuam a opor os historiadores”.

Mas não se trata só da revolução russa. Os historiadores revi­sionistas querem pôr toda e qualquer revolução fora da lei ao decretar que a luta pela eliminação de uma classe seria uma forma de “genocídio”! “O genocídio de classe é equivalente ao genocídio racial”, decreta Courtois. E assim a longa luta dos oprimidos pela conquista dos seus direitos humanos aparece virada do avesso, com a burguesia a exigir o acatamento da ordem social existente, em nome dos seus próprios “direitos humanos” de explorar e oprimir. De facto, porque não há-de a minoria burguesa ver respeitado o seu “direito à diferença”?

Uma coisa parece certa: este desatar frenético da campanha de erradicação do comunismo, em que surgem com frequência apelos explícitos à repressão, não resulta só de um ajuste de contas com o passado ou do desejo de apagar o rosário de genocídios do capitalismo, do Vietnam à Coreia, à Indonésia, Argélia, África, América Latina. Indica também um medo latente, obsessivo, do que está para vir. A burguesia parece querer banir o direito à existência dos comunistas e do seu partido, porque pressente que a bandeira vermelha vai ressurgir em novos grandes combates de classe.

Política Operária nº 62, Nov-Dez 1997

 

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