A lei das 45 horas

Francisco Martins Rodrigues

 Impor a flexibilidade e polivalência a troco de uma “redução” fantasma dos horários – quem pode negar que estes socialistas são peritos em ilusionismo?

Veio do Norte a mais forte reacção operária à famigerada lei “socialista” das 40 horas: con­centrações, marchas, cortes de estrada, paragens do trabalho. Em muitas fábricas do Vale do Ave os operários já puseram em vigor o descanso ao sábado. 0 governo, entalado entre a apro­ximação das eleições autárquicas e a inflexibi­lidade do patronato, tenta cansar o movimento com ameaças e “esclarecimentos”. E acabará por consegui-lo se a CGTP canalizar o apoio e simpatia ganhos entre os operários para as habi­tuais diligências institucionais.

A BURLA DA MINISTRA

Em teoria, a lei das 40 horas viria beneficiar mais de um milhão de trabalhadores, que cum­

prem ainda horários de 4l a 45 horas semanais, sobretudo na têxtil, construção, mobiliário, comércio (já sem falar nos cerca de 300 mil que ainda trabalham mais de 46 horas, sobretudo na restauração, pesca e agricultura); muitos ainda não desfrutam da banalizada regalia do descanso ao sábado.

Mas neste tempo de ofensiva capitalista desbragada, era de prever que a “benesse” das 40 horas traria água no bico. Desde logo, como os industrial clamaram que a redução dos horários lhes tirava as condições para enfrentar a concorrência – o velho argumento com que há gerações se vêm esfolando os operários -, o governo ofereceu ao patronato das contrapartidas’: flexibilidade de horários (que passam a poder ir até às 9 horas diárias de trabalho “normal”) e polivalência (desempenho de funções não previstas na categoria). Eram precisamente as duas exigências que as confede­rações patronais vinham há anos reclamando e que o movimento sindical até agora conseguira bloquear.

Isto, porém, era considerado pouco pelos patrões. Então, a ministra do Emprego teve a esperteza de intro­duzir sorrateiramente na lei a especificação de que o trabalho efectivo exclui “todas as interrupções que im­pliquem a paragem do posto de trabalho ou a substi­tuição do trabalhador”.

Assim, os industriais, após embolsarem as prendas da flexibilidade e da polivalência, aproveitaram a porta que o governo lhes abria para sofismar a “redução gradual da semana de trabalho”. As pausas há longos anos conquistadas (desde os anos 50, no tempo do governo fascista) e até aqui reconhecidas para um breve almoço, para lanche, ou para um curto descanso, dei­xam a partir de agora de contar no período de trabalho. E aí passam os operários a gozar a nova semana de 40 horas, trabalhando o mesmo (se não mais) do que antes!

ADESÃO PATRONAL

Lançada pelos grandes industriais têxteis do Vale do Ave (Manuel Gonçalves, Riopele, Somelos, Fitor, Sampaio Ferreira, Oliveira Ferreira, etc.), esta des­carada “interpretação” da lei generalizou-se pratica­mente a todo o país. Quem diz que o patronato portu­guês é avesso às inovações?

Veja-se como os industriais de calçado aplicaram a lei: a semana de trabalho é reduzida de 43 para 41 horas, oferecendo os patrões 20 minutos (4 minutos diários!) e contribuindo os trabalhadores com a sua pausa, há muito consagrada, de 20 minutos diários para almoço. Assim se obtêm a “redução” de duas horas na semana de trabalho! O sindicato, naturalmente, tem estado a opor-se mas não parece que consiga levar a melhor.

Nas fábricas de garrafas da Marinha Grande, melhor ainda: ao deixar de ser contadas as pausas de meia hora diária para a refeição, os trabalhadores, em vez de terem os horários reduzidos de 42 para 40 horas, tiveram um agravamento de mais meia hora por sema­na! E não foi tudo. Considerando que a lei deveria ser aplicada retroactivamente, os patrões chegaram à conclusão de que os trabalhadores ainda lhes seriam devedores das horas de refeição já gozadas desde a aprovação da lei (em Julho). Após uma sucessão de plenários tiveram que abandonar esta última invenção mas a recusa a contar as pausas continua.

Nas confecções Melka, com fábricas no Cacém e em Palmeia, mais de 200 trabalhadores receberam processos disciplinares por terem posto em prática a semana de 40 horas, passando a sair às cinco da tarde. Depois de uma série de acções, o mais que conseguiram foi o arquivamento dos processos disciplinares mas à custa de voltarem a cumprir o horário antigo, com saída às 17.20.

NÃO ENGOLIR A PÍLULA

O governo “socialista”, que julgou fazer uma flor de esquerda com a mistificação da “semana das 40 horas”, descobre agora que se meteu numa alhada de todo o tamanho em ano de eleições. A indignação ope­rária e a adesão às iniciativas de mobilização da CGTP não prenunciam nada de bom quando chegar a con­tagem dos votos. Os autarcas do Norte, sobretudo, estão em pânico, perante o perigo de perderem os lugares em Dezembro. A UGT, assim como muitos deputados e autarcas socialistas, concordando todos que “a lei é boa”, pedem alarmados que o governo faça qualquer coisa para convencer os trabalhadores a engolir a pílula. Mas recuar é impossível: a CIP já fez saber que, “ou se cumpre a lei das 40 horas (como eles lhe cha­mam), ou não há concertação”, e aí considerar-se-iam com as mãos livres para novos ataques aos traba­lhadores, com consequências imprevisíveis.

O estrata­gema usado para fazer os operários tra­balhar mais é tão fraudulen­to que, se não se tratasse de relações labo­rais, onde to­da a gente pensa que va­le tudo, desde logo daria lu­gar a procedi­mento crimi­nal. É uma me­dida bem na linha das tra­dições clerical- fascistas deste país. Importa pois que o mo­vimento ope­rário continue a rejeitar com decisão a bur­la das 40 ho­ras. Para já, as operárias têx­teis do Vale do Ave fizeram lembrar aos distraídos que o movimento operário ain­da existe nes­te país. O perigo será deixar enlear a luta nas “clarifica­ções” do Governo e da Assembleia, nas “recomen­dações” do Provedor de Justiça, ou na “simpatia” do presidente da República. Esses são expedientes com que se tenta desarmar a indignação operária. Tudo depende agora de saber se a acção da base, das fábricas, será capaz de impedir um acordo entre o Governo e os diplomatas da direcção da CGTP.

 Política Operária nº 59, Mar-Abr 1997

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