Cunhal condenado a perder a batalha

Francisco Martins Rodrígues

“Recusa à mudança” é talvez a ideia que mais surge associada a Álvaro Cunhal. Como elogio ou como condenação, mas sempre com o signifi­cado de “comunista intransigente”. A realidade não é tão simples, como julgamos ter mostrado numa série já longa de artigos e comentários desde há bastantes anos. Para se apreender o pensamento político de Cunhal há que estudá-lo na sua complexidade, descascá-lo, por assim dizer, como um fruto, caminhando do revesti­mento para o miolo.

Há primeiro, à superfície, uma firmeza apa­rentemente inabalável de posições, que é a ima­gem que retêm os espíritos simples (Cunhal proclama hoje como há meio século a “actualidade do leninismo”, o “carácter de classe do partido”, o valor histórico da revolução russa, a luta anti-imperialista, o “orgulho de ser comu­nista”, etc.); todavia, se observarmos com um pouco mais de atenção o seu percurso político, encontraremos uma segunda camada, marcada por uma incoerência pasmosa; é assim que ele abandona sem autocrítica, por exemplo, a tese do “regime não-capitalista” que, segundo parece, ainda há dez anos vigorava em Portugal por força das “conquistas irreversíveis”; ou que passa das afirmações obsessivas sobre a “força inabalá­vel da comunidade socialista” para a admissão de que tudo foi deitado a perder por um con­junto de misteriosos “erros”; ou que rejeita a noção de “ditadura do proletariado” não a rejeitando…

É então Cunhal um vulgar oportunista e demagogo? Claro que não; se o fosse, não se manteria à cabeça do único partido com real influência operária do nosso país, durante mais de meio século. Se cavarmos mais fundos, encontraremos na base desta incoerência uma linha de pensamento imutável: a utopia romântica duma revolução socialista apoiada em massa pela pequena burguesia graças à contenção, paciên­cia e humildade da classe operária — este sim, o verdadeiro núcleo duro da ideologia cunhalista: o progresso pela colaboração fraterna das clas­ses “populares”, ideia que ainda conserva certo atractivo na cabeça dos operários.

Novos exemplos deste sistema de ideias surgi­ram, há cerca de um ano, na entrevista que Cunhal deu à Politika, a revista dos jovens comu­nistas (?). Dessa entrevista, que passou mais ou menos despercebida, retirámos alguns tópicos que ilustram o que afirmamos.

“COMUNIDADE SOCIALISTA” QUE SE EVAPORA

Não podendo já negar a situação catastrófica na URSS e na Europa de Leste, mas não que­rendo reconhecer a falsidade da sua propaganda de tantos anos à “poderosa comunidade socia­lista”, Cunhal debate-se numa série de absurdos.

Diz que as transformações surgidas na Europa Oriental vieram “corrigir situações que necessitavam de ser corrigidas” mas acrescenta logo adiante que essas medidas estão a “voltar-se noutra direcção que poderá ser a restauração do capitalismo”. Este contra-senso — uma “correc­ção” que degenera numa liquidação — resulta da impossibilidade em que Cunhal se encontra de reconhecer, muito simplesmente, que as tais medidas que ele apelidava de “correctivas” eram já o preâmbulo da actual “restauração”, como aliás demonstraram, de há trinta anos para cá, numerosos críticos (os tais “provocadores esquerdistas”…). Quantas vezes foi dito que a introdução “controlada” dos mecanismos de mercado e de lucro nessas economias acabaria necessariamente por impor a sua lógica e devo­rar todo o sector estatal? Quantas vezes foi dito que o Estado generosamente partilhado com “todo o povo” acabaria por reverterem benefício exclusivo da burguesia?

Da mesma forma, Cunhal defende sem titu­bear que a perestroika é uma “revolução real” porque isso lhe é indispensável para ressalvar um resto de esperança quanto ao futuro da URSS; mas nega que esta “revolução” ponha classes frente a frente — como poderia haver na URSS “socialista” classes antagónicas? O objectivo da perestroika acaba assim numa modesta “renova­ção no quadro do socialismo”, deixando toda a gente sem perceber como pode esta simples “cor­recção” causar tantas convulsões.

Assim vai Cunhal fazendo ao longo da entre­vista uma tortuosa colagem de paradoxos, sob uma firmeza de princípios meramente verbal.

SOCIALISMO PARA ENGENHEIROS

Mas nesta embrulhada de contradições há um fio condutor, como dissemos. Cunhal demarca-se com ênfase de ideias “simplistas” e “utópicas” que atribuem ao socialismo a meta da extinção das classes; para ele, o objectivo da fase socialista é apenas eliminar as “classes antagóni­cas” (isto é, eliminar os donos do capital, não a organização capitalista do trabalho; a experiência soviética continua a ser a sua cartilha); além disso, não vê nenhuma impossibilidade para revoluções socialistas em países onde não haja proletariado; e admite que a noção de classe operária se tornou muito complexa e tem que ser revista.

Tudo isto conflui para uma conclusão que é o eixo do seu pensamento político: o “socialismo” como produto duma vasta aliança entre operá­rios, quadros, pequenos e médios patrões; o “socialismo” como um mosaico de formas eco­nómicas, onde o sector estatal convive em boa paz com o sector privado; o “socialismo” sem as explosões de revolta dos explorados contra os exploradores; numa palavra, o “socialismo” sem a malfadada “ditadura do proletariado”…

A DITADURA PERSEGUE-0

Cunhal continua enleado na necessidade de dar explicações sobre a “ditadura do proleta­riado”, riscada do Programa do partido em Dezembro de 74. Sim, admite, riscámos, “mas esclarecemos que a palavra ditadura não tinha que ver com o regime político, era a definição genérica dum sociedade dividida em classes”.

É inevitável a pergunta: se o PCP achava a expressão importante e esclareceu o significado da palavra “ditadura”, porque a riscou? Acaso pode um partido que se declara marxista riscar a única expressão que define com rigor as relações sociais após a revolução?

A verdade conhecida de quase todos é que, em atenção aos pruridos da burguesia democrá- tica, Cunhal riscou a ‘ditadura do proletariado’ para alargar o espaço de manobra do PCP. jCedência que de pouco lhe serviu, porque havia muito mais coisas que a burguesia não tolerava: as manifestações, as comissões de trabalhadores, a reforma agrária, a perda de autoridade do Estado…

A “revolução” intermédia, “democrática e nacional”, sem “ditadura do proletariado”, nau­fragou num desastre completo, não sem pri­meiro sacrificar à sua lógica todos os interesses operários e populares, todo o espírito de vigilân­cia e de resistência de classe, deixando os traba­lhadores na mais profunda crise política e ideológica. Mas Cunhal quer que os operários saibam que continua a gostar muito da ‘ditadura do proletariado’…

FRASES MARXISTAS MIOLO ANTI-OPERÁRIO

À superfície, para os operários, frases mar­xistas sobre a luta de classes; no interior, um projecto utópico de “socialismo” pequeno- burguês, anti-operário; como resultante, um per­curso contraditório e incoerente — eis em resumo o pensamento político de Álvaro Cunhal.

Percebe-se assim melhor a derrota que o espera na polémica que vem travando com os liberais do seu partido, que “perderam a confiança no socialismo, na construção da sociedade nova”, querem “pôr em causa a natureza de classe do partido” e caem na órbita do PS. Ele quer impedir o florescimento das concepções que tem semeado ao longo da sua vida. Trabalho perdido. Foi a vida que demonstrou que o “cunhalismo” desabrocha na social-democracia.

Política Operária  nº 30, Maio-Junho 1991

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