Francisco Martins Rodrigues
Os dirigentes do PCP devem estar satisfeitos: o XIII congresso do partido, há dias terminado em Loures, cumpriu os objectivos traçados. Atalhou o perigo de pânico e debandada devido à derrocada do Leste, convencendo os militantes de que foi só um acidente de percurso, grave mas ultrapassado; preparou a sucessão de Álvaro Cunhal com uma figura neutra, capaz de atenuar tensões internas; e cilindrou mais uma vez as veleidades dos críticos, devolvendo a confiança aos militantes que começavam a intimidar-se com a algazarra geral a favor da mudança.
Se avaliarmos o congresso nesta perspectiva puramente pragmática, poderemos convencer-nos de que consolidou as posições dos “ortodoxos”. Se pensarmos todavia nas questões que se levantam ao PCP em termos políticos, não nos podem restar dúvidas de que a fácil vitória de Álvaro Cunhal em mais esta batalha aproximou a sua derrota na “guerra” que vem travando.
O VELHO PCP TEM OS DIAS CONTADOS
O velho PCP está acabado. Não porque o marxismo-leninismo e a revolução tenham passado à história, como repetem encantados os asnos que entendem tudo ao contrário, mas precisamente porque o marxismo-leninismo se cansou de sofrer tropelias às mãos dos reformistas e lhes pregou uma partida: duma assentada faliram os referenciais do PCP, no plano internacional como no nacional — lá fora, o “socialismo” da URSS e, cá dentro, a “revolução democrática e nacional”.
Álvaro Cunhal, que tanto gostava de dizer que o PCP “previu e preveniu”, neste caso não previu nada. E vê-se a braços com este problema: o PCP. Marginalizado e hostilizado pela sociedade burguesa, sustentava-se da convicção de que estava predestinado a ter o poder; agora, com a derrocada combinada do modelo soviético e da “revolução democrática e nacional”, como vai reencontrar uma estratégia?
URSS: MAIS VALE ESQUECER
A obstinação de Cunhal em não entender o sentido da evolução na União Soviética só pode compreender-se como fruto do desespero; admitir que se está a dar o retorno da URSS ao capitalismo seria para ele uma espécie de harakiri. Mas, ao tentar racionalizar as novidades que chegam da URSS como “novos avanços do socialismo”, é forçado a mergulhar no absurdo.
Diz-se na Resolução Política do congresso, a propósito da evolução da União Soviética, que, “com a consolidação do Estado socialista… o poder popular efectivo foi substituído por um poder fortemente centralizado… tomando decisões de carácter arbitrário e repressivo”. Por outro lado, a partir de agora, com a perestroika, estaria a dar-se “o restabelecimento do exercício do poder político pelo povo, através da reconstituição dos sovietes”. É uma explicação assombrosa para quem quer que se pretenda marxista. Se os membros do PCP ainda conseguissem raciocinar (coisa de que duvidamos seriamente) perguntariam como pode em qualquer país “consolidar-se o Estado socialista” ao mesmo tempo que se instaura um poder arbitrário e repressivo sobre o povo. Então o socialismo não exige por definição precisamente o poder dos trabalhadores?! E, se se reconhece agora que os trabalhadores não detinham “o poder efectivo”, que estranho poder foi então esse que teria feito avançar apesar de tudo o socialismo? E se agora já não há dúvidas para o PCP de que o poder dos sovietes não existe na URSS (visto que vai ser “reconstituído”), como se pensa que possa ser de novo instaurado sem uma nova revolução semelhante à de 1917?
De qualquer lado que os voltemos, os novos argumentos com que a direcção do PCP pretende digerir o terramoto e recuar para novas trincheiras equivalem a tornar totalmente caótico o seu edifício ideológico. E isto não deixará de provocar efeitos desagregadores na actividade do partido, quando passar a euforia das aclamações do congresso.
Como se sabe, os comunistas revolucionários têm uma outra análise para os acontecimentos, a qual lhes permite entender o encadeamento dos factos e até prever com acerto o sentido da sua evolução. Resumidamente: não há nem podia haver socialismo na URSS, antes de mais porque o poder dos sovietes desapareceu poucos anos após a revolução, debaixo do oceano camponês pequeno-burguês. O que restou foi uma formação social aleijada o capitalismo de Estado, idealizado desde o tempo de Staline como “socialismo”, mas que, pela sua natureza, iria evoluir irresistivelmente para a restauração capitalista.
Dizer-se que a perestroika vai trazer a “reconstituição do poder dos sovietes” é um mau gracejo de Gorbatchov, que só Cunhal levou a sério. A perestroika vai obviamente trazer — e já está a trazer — joint ventures, “verdade dos preços”, desemprego, privatizações, ditadura da burguesia. Compreendemos que isto seja inacreditável para os 2.061 delegados presentes no congresso. À força de serem treinados em “confiar nos camaradas soviéticos”, militantes do PCP são capazes de se precipitar todos por uma ribanceira abaixo, de preferência a mostrar dúvidas. É o caso dum militante indefectível (José Manuel Jara) que, num artigo recente de jornal, tenta à viva força fazer-nos divisar no descalabro do Leste “uma imprevista afirmação da versatilidade táctica e estratégica do marxismo-leninismo” (!).
A REVOLUÇÃO QUE NAO EXISTIU
Mas não se trata apenas da decomposição das sociedades que serviam de bandeira ao PCP. Trata-se também do lugar deste na política nacional. Duma formal não tão espectacular como a do naufrágio do “socialismo” do Leste, mas não menos demolidora, o homem da rua vai-se apercebendo com certo espanto de que, ao realizar aquilo que anunciava como uma “revolução democrática e nacional”, o PCP estava simplesmente a ser o servente da transição ordeira do fascismo para a democracia burguesa. As nacionalizações, a reforma agrária, a Constituição, o movimento sindical unitário, as “conquistas de Abril” foram espectaculares mas tão inseguras, tão pouco revolucionárias, que em pouco tempo se derreteram como neve ao sol. A “revolução democrática e nacional” nunca existiu, a não ser nos relatórios de Álvaro Cunhal e na cabeça dos militantes do PCP. E agora, que os partidos da burguesia se apanham consolidados no poder, depois de terem derrubado como um castelo de cartas toda a fortaleza laboriosamente erguida pelo PCP, eles vedam-lhe o acesso ao poder alegando que “não dá garantias democráticas”!
Protestar contra esta deslealdade é inútil. O PCP comportou-se, durante a crise de 74/75 e no seu rescaldo, com um respeito exemplar pelas regras do jogo burguês, respeito que ainda sobressai mais se tivermos em conta as possibilidades que lhe proporcionava a sua implantação operária e popular pouco comum. Agora tem a paga por esse respeito.
Política Operária nº 25 Maio-Junho 1990