Francisco Martins Rodrigues
Os generais novembristas falam acerca do seu golpe. Agora que já lá vão 30 anos, Ramalho Eanes, Loureiro dos Santos, Jaime Neves, Tomé Pinto & Cia. contam (quase) tudo sem complexos, garantindo com a maior desfaçatez que só agiram por amor à Pátria e “dentro da legalidade”. Vale a pena vencer a repugnância que despertam as suas gabarolices e as suas proezas de meia tigela, e tomar nota de alguns pormenores instrutivos, que desmentem a lenda do “contragolpe democrático, necessário para fazer face ao golpe extremista da esquerda”.
Os golpistas confessam como começaram a estabelecer contactos imediatamente a seguir ao malogro do golpe spinolista de 11 de Março e como uma das suas primeiras medidas foi dissolver a 5ª Divisão, por recearem que os desmascarasse.
Como convocaram a assembleia de Tancos e aí agiram concertadamente, usando Pinheiro de Azevedo como ponta de lança para forçar Vasco Gonçalves à demissão.
Como entraram em contacto com as embaixadas estrangeiras (muito discretos quanto a Carlucci, não se percebe bem porquê, uma vez que este já se desbocou em entrevistas à imprensa: “Tive contactos com Vítor Alves, almocei várias vezes com Melo Antunes, com Vasco Lourenço uma ou duas vezes, com Soares e Zenha; quem falava com Eanes era o coronel Shuler, adido militar…”);
Como Melo Antunes foi a Inglaterra pedir apoio em armas, que lhe foi prometido pelo primeiro-ministro James Callagham.
Como o presidente da República, Costa Gomes – cuja “grande habilidade” louvam, por ter sabido favorecer o golpe na sombra, sem perder a aparência de imparcialidade – lhes deu luz verde para instalarem com um mês de antecedência o seu posto de comando secreto num 5º andar do Estado-Maior General das Forças Armadas.
Como mantinham relações estreitas com os terroristas do MDLP; como iniciaram reuniões clandestinas com o PS, em Cascais, e como nas vésperas do golpe entregaram mil armas a grupos de operacionais do PS.
Como Otelo, apertado pelos golpistas, numa reunião no QG da Região Militar de Lisboa, se dispôs a fazer o que eles pretendiam; como dias depois lhes fugiu de novo ao controle; e como acabou por deixar correr a conspiração e, no dia do golpe, saiu voluntariamente do comando do COPCON e se foi entregar a Belém, deixando os fuzileiros sem comando e sabotando qualquer hipótese de resistência ao golpe.
Como admiram a “grande experiência” de Álvaro Cunhal, o qual, “sentindo o perigo do aventureirismo da extrema-esquerda”, soube conter os trabalhadores no cerco da Assembleia, “que poderia ter acabado numa insurreição geral”.
Uma contradição ressalta contudo das confissões destes combatentes de aviário, especialistas em jogar pelo seguro e dar facadas pelas costas. Se a extrema-esquerda não representava uma ameaça de tomada do poder porque “não tinha uma grande organização nem um grande propósito” (como de facto não tinha), e se o PCP também não pensava em tomar o poder (como de facto não pensava), porque Cunhal, “pela sua grande experiência”, apenas estava interessado em fazer “demonstrações de força como trunfo político” – então porquê era tão vital dar o golpe de Estado?
Porque era preciso meter na ordem o povo. Essa a razão profunda que emerge da argumentação dos generais. Nas suas palavras, eles agiram porque se impunha “defender os interesses de Portugal” contra o “poder popular, o armamento, o descontrolo, a indisciplina” – ou, em bom português, deram o golpe para esmagar as veleidades de soberania dos trabalhadores e salvaguardar os interesses da burguesia.
E assim fica completa a mal-cheirosa autópsia da “gloriosa jornada regeneradora do verdadeiro espírito do 25 de Abril”.
Política Operária nº 102