Os esqueletos

Francisco Martins Rodrigues

Há quem acuse Mário Soares de estar a trair o espírito da votação democrática que o elegeu. É falso. O presidente pode ser obrigado, por razões de Estado, a dar umas baldas ao Cavaco mas os sentimentos de esquerda conti­nuam a palpitar nele bem vivos.

A prova aí está no “Balanço do século”, que tem feito desfilar pela Gulbenkian figuras prestigiosas da esquerda mundial, como Karl Popper, Mário Vargas Llosa e agora Jorge Semprun, trazidos a Portugal pelo infatigável assessor do presidente, esse outro vulto da esquerda que é João Carlos Espada.

Naturalmente que ser de esquerda, hoje, na era do pós-industrialismo, não é o mesmo que noutros tempos. Cada época tem as suas tarefas. Há 50 anos, ser de esquerda era pegar em armas contra o fas­cismo. Há 20 anos, a esquerda aplaudia a revolução cultural chinesa e as guerrilhas do terceiro mundo. Hoje, a verdadeira esquerda reconhece-se pela coragem em pôr a nu a falência dos mitos da esquerda.

Daí que os seus pensadores mais váli­dos sejam os que conheceram por dentro as misérias e os horrores da velha esquerda. Semprun, por exemplo. Militou na Resis­tência francesa, esteve num campo de con­centração nazi, foi dirigente na clandestinidade do Partido Comunista Espanhol. O que ele não tem de podres para contar! Não sobre o fascismo, evidentemente; sobre o comunismo.

Com a autoridade que só a experiência vivida pode dar, Semprun demonstrou, perante um auditório regalado, “o fracasso da revolução comunista como processo libertador”, explicou que “a crença no pro­letariado como classe universal destinada a fazer desaparecer a sociedade de classes foi um erro de Marx” e revelou o tema do seu próximo romance – a loucura terrorista, ou como pode o marxismo inspirar actos contra-revolucionários.

Tudo isto com grande dignidade e sem perder a inquietação militante de outros tempos. É esse o picante da coisa: desco­brir que as opiniões de direita afinal tam­bém podem ser de esquerda.

Este gosto pela exibição macabra de cadáveres de ex-revolucionários é bem típico da nossa época. Parece que o espec­táculo oferecido pelos renegados ao assu­mirem a sua renegação tem um efeito tranquilizador sobre um público ainda mal refeito das humilhações e dos medos de 75. É reconfortante ver subir à tribuna antigos comunistas, dos autênticos, em carne e osso, e ouvir-lhes dizer que a revolução é um crime.

Por isso, como no circo, o público exige sempre mais. Aqui há uns anos, um renegado credível era aquele que justifi­cava a sua deserção com os horrores do stalinismo, mas sem pôr em causa a admi­ração pela revolução russa e por Lenine. Agora já não chega. Hoje em dia, para se ser validamente de esquerda, é preciso con­denar a revolução como uma aventura totalitária, repudiar a luta de classes como obsoleta, desmistificar o marxismo como uma fraude reaccionária.

Só temos um reparo a fazer à audaciosa iniciativa do presidente Soares: é ter-se esquecido que há entre nós figuras de esquerda tão válidas como as de lá de fora. Por que espera para convidar para o “Balanço do século” o dr. Silva Marques, a Cândida Ventura e o Chico da CUF?

Política Operária nº 13, Jan/Fev1988

 

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