Ânsia de liberdade


Francisco Martins Rodrigues

“O FUTURO RADIOSO”, de Alexandre Zinoviev. D. Quixote 1987.

“Desde que Soljenitsine conseguiu ser uma celebri­dade mundial, um intelectual em cada três pôs-se a escrever coisas anti-soviéticas ou está a preparar-se para isso”. Com este desabafo que põe na boca do seu personagem, A. Zino­viev resume o seu próprio caso. Viajou para o Ocidente para poder contar ao mundo como é execrável o modo de vida soviético. Mas, embora se dedique a explorar o filão, ainda não conseguiu tornar-se uma celebridade como Solje­nitsine. Talvez por falta de talento literário, talvez pelas indigestas tiradas ideológicas com que recheia os seus livros.

O futuro radioso pre­tende ser uma sátira demoli­dora ao meio dos funcionári­os-intelectuais de Moscovo nos anos 70, em pleno brejnevismo. Fala-nos de gente da classe média, embrutecida, cínica e mesquinha, agachada perante o poder. Ninguém vale nada, impera um carreirismo desbragado, “existe uma luta geral e violenta pela obtenção de privilégios”.

Desta morna baixeza extrai Zinoviev a sua filosofia, repi­sada ao longo do livro até à exaustão: o comunismo já existe, é este nojo; o futuro radioso da humanidade não passa dum engano gigantesco; o marxismo não fornece ex­plicação racional para nada, é uma construção ideológica criada pela parte mais medíocre da sociedade para seu pro­veito próprio; etc., etc.

A isto se reduz a bagagem ideológica de Zinoviev que, como todos os bons dissiden­tes, não se esquece de achinca­lhar de passagem a revolução de 1917, admirar as “liberda­des” do Ocidente e fazer o seu namoro à religião – a miséria do costume.

O que não significa que o livro não tenha interesse para quem quer compreender a sociedade soviética actual. Pelo contrário. Aquilo que Zinoviev desvenda involunta­riamente é a raiz da atracção pelo Ocidente que domina as camadas médias soviéticas, a sua ânsia de imitação, o seu sentimento de inferioridade perante as “luzes” do mundo capitalista.

Inveja dos bens de consumo a que não têm acesso, das maiores oportunidades de “subir na vida”, da maior liberdade cultural? Sem dúvi­da. Mas tudo isto são parcelas duma reivindicação mais pro­funda – o direito à emancipa­ção política.

Forçados a condenar a pro­priedade privada (com que sonham), obrigados a celebrar a mentira gigantesca da “socie­dade sem classes” e da “cons­trução do homem novo”, os novos burgueses soviéticos sentem-se asfixiar. Já não aguentam ter de renegar dia­riamente os seus próprios valores. Anseiam pelo dia em que possam afirmar o seu direito a existir como classe.

Essa obrigação intolerável de continuar a declarar fideli­dade ao que já não existe, como quem fica o resto da vida a velar um morto, é a ori­gem da náusea em que se deba­tem os personagens de Zino­viev. A descrença de que algum dia possam viver numa sociedade burguesa normal é a fonte da sua amargura ranco­rosa.

E isso consegue o livro retratar. Vale a pena ler o epi­sódio grotesco da redacção dum novo manual sobre a “metodologia do comunismo científico”, que serve de pano de fundo à história.

Manejos e intrigas entre académicos em busca de pro­moção resultaram na decisão de redigir uma nova cartilha oficial. Durante meses a fio, batalhões de “especialistas em ideologia marxista-leninista” consomem-se num esforço épico, correndo para as reuni­ões de secções, comités e sub­grupos, escrevinhando relató­rios, notas e observações, revendo e polindo sem fim as fórmulas “científicas”, não vá escapar alguma ideia original, até o texto ficar pronto para publicação: seis meses para elaborar o plano geral da obra, mais seis meses de redac­ção parcelada em subcapítulos (é a tarefa dos escribas de ser­viço, pagos à hora), ainda seis meses para juntar e refundir tudo de novo; apreciação pelos órgãos competentes do Comité Central; nova refundição geral… E toda esta sórdida mastiga­ção, pomposamente alcunha­da de “trabalho colectivo”, para disfarçar o abismo entre a vida real e os elevados prin­cípios proclamados.

Compreende-se que Zino­viev não suportasse mais tan­ta hipocrisia e tenha buscado refúgio num mundo em que pode finalmente ser franco. De qualquer modo, se tivesse sido mais esperto e menos impulsivo estaria hoje a gozar em Moscovo as primeiras ale­grias da transparência – ainda só um primeiro passo, é certo, mas já um passo no caminho que levará a nova burguesia soviética a desenvencilhar-se do colete de for­ças “marxista” em que sufoca.

Política Operária nº 12, Nov./Dez. 1987

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