Salada russa

Francisco Martins Rodrigues

O comunismo num mundo em mudança, Boris Ponomariov. Edições “Avante”, 1985. Preço: 500$. ESTAMOS perante a mais recente edição de enlatados de “marxismo-leninismo” pro duzidos em Moscovo para consumo internacional.

Laboriosamente preparado por uma equipa de especialistas, O texto a que B. Ponomariov deu assinatura tenta demonstrar convicções revolucionárias, rigor científico, audácia de ideias. Em vão. Os protestos de amor pela humanidade trabalhadora tresandam a paternalismo demagógico, o ranço dogmático anula a cada passo a atitude postiça de desenvoltura polémica. Os argumentos são coxos, as contradições flagrantes.

É o caso dos protestos escandalizados contra “afirmações absurdas” acerca das dificuldades da economia soviética, agora que Gorbatchov acaba justamente de as reconhecer. Ou da descoberta de uma ” aproximação de todas as classes e camadas sociais” na URSS, que todos sabem não ser verdadeira. Ou das explicações embrulhadas que dá sobre o funcionamento da “autêntica democracia ” na URSS, onde os únicos discordantes seriam “decadentes enfurecidos, por vezes um tanto doentes”(pág. 116). Ou da forma como consegue falar do Afeganistão sem mencionar a presença das tropas soviéticas.

Mas isto não quer dizer que o livro não deva ser lido. Pelo contrário, o seu estudo é importante para tentar entender a misteriosa influência que a ideologia soviética conserva sobre o proletariado da URSS e largos sectores da opinião em todo o mundo.

Se olhássemos só às posições de tipo social-democrata a que Ponomariov dá aval, seríamos tentados a classificar o livro como um estendal de reformismo puro e simples.

A revolução nos países capitalistas será conseguida, diz-nos, através de uma etapa intermédia de “democracia antimonopolista ” ou “democracia avançada” (págs. 179 -182). E acrescenta: “A realização consequente de todas as exigências da democracia pode facilitar a mudança da essência de classe das instituições democráticas tradicionais” (págs. 201-202). A transmutação do Estado burguês em Estado socialista pe lo exercício da democracia!

Nesta perspectiva, as reivindicações imediatas do movimento operário não servem apenas como escola para a luta pelo poder: “Muitas das questões que preocupam os trabalhadores podem ser resolvidas hoje, no capitalismo” (pág. 191). Com a ajuda prestimosa dos engenheiros, naturalmente: “Uma grande parte dos engenheiros e técnicos tende cada vez mais para a aliança com a classe operária” (pág. 211). E, já agora, também aos pequenos empresários caberá um papel importante como aliados da classe operária, “mesmo na etapa da construção do socialismo” (pág. 175).

FMR SALADARUSSA14082016

Operários sorridentes de braço dado com os chefes, sob o drapejar de uma bandeira vermelha com o martelo e a foice — a propaganda soviética cada vez se torna menos convincente, mais desajustada da realidade.

Ficamos a saber também que, “movidos pelo humanismo, os comunistas são adeptos da via pacífica de realização da revolução” e que tal é possível “através de diferentes formas de entendimento e de cooperação política de vários partidos e organizações sociais” (págs. 183-184).

O próprio Lenine teria sido um adversário irredutível do terror e da conspiração! Por isso, “em toda a parte, os comunistas são os combatentes mais decididos contra o terrorismo “, O seu zelo chega ao ponto do PC italiano criticar a moleza das autoridades e exigir a “destruição” dos terroristas. Assim mesmo! Porque só demonstrando a falsidade das “campanhas difamatórias contra os comunistas” se conseguirá a sua entrada no governo, que “se tornou uma questão política prática” (pág. 229).

Tudo isto misturado com exortações evangélicas a favor da paz mundial, em que não sabemos se nos havemos de repugnar mais com os apelos aos bons sentimentos da burguesia ou com o acenar dos bons negócios que pode fazer no comércio pacífico com o Leste (pág. 158).

Há no catecismo de Ponomariov um tão grande cretinismo democrático-parlamentar que julgamos encontrar-nos perante uma versão actualizada de Bernstein ou Kautski. Mas a questão não é assim tão simples. O texto de Ponomariov não pode ser reduzido às suas expressões social-democratas. De facto, nenhum social -democrata, por mais “esquerdista”, encheria páginas a pintar as risonhas cores do comunismo, como faz Ponomariov. Nenhum social-democrata seria capaz de glorificar como ele a missão histórica da classe operária, a revolução socialista de Outubro e a luta de Lenine contra os mencheviques. Nenhum apelaria ao “amplo desenvolvimento da luta de classe dos operários ” para acabar com o capitalismo. Nenhum manejaria com este à-vontade os conceitos marxistas de classe, a necessidade do “partido revolucionário de vanguarda, assente no centralismo democrático”. etc., etc.

Estamos assim perante uma contradição desnorteante, que atravessa toda a ideologia soviética moderna: eivada de preconceitos reformistas, pacifistas e nacionalistas, hipócrita e tacanha, mas sem largar mão da bandeira do marxismo-leninismo, da revolução, do comunismo, numa combinação de contrários à primeira vista absurda.

Numa página avançam-se teses revisionistas descara das, para logo noutra se condenar a revisão do marxismo. Tão depressa se fala nas contradições insolúveis do capitalismo como se apela à sensatez dos capitalistas. Ora se reivindica o direito às guerras justas, ora se repudia com horror toda a espécie de guerras.

Esta combinação original de proclamações revolucionárias e de subserviência rastejante perante a burguesia, donde vem? Donde vem esta atitude conciliadora, reformista, aparentemente peque no-burguesa, por parte duma classe tão poderosa como a que governa a União Soviética?

As profissões de fé comunistas dos Ponomariovs não têm nada que espantar. A burguesia de Estado soviética precisa desesperadamente de manter ocultas as novas relações de exploração que se estabeleceram à sombra do regime “socialista”. Tirar partido, o mais tempo possível, do aspecto enganoso da propriedade nacionalizada para convencer os operários de que na URSS vigora o socialismo é para ela uma questão vital.

Nisto é semelhante a todas as classes exploradoras. A burguesia do Ocidente precisa ainda hoje de convencer 0 proletariado de que a propriedade privada é apenas uma resultante da livre iniciativa, da democracia e da igualdade dos cidadãos. A nova burguesia soviética, pela sua parte, precisa de vender a ideia de que os seus privilégios são meras imperfeições temporárias num sistema a caminho do comunismo.

Naturalmente, os princípios têm que ir sendo “ajustados” quando a contradição com os factos se torna demasiado flagrante. É assim que surgem as teorias do “Estado de todo o povo” e do “partido de todo o povo”, as novas teorias económicas baseadas no critério do lucro, a nova moral “humanista” acima das classes, etc. O marxismo-leninismo dos Ponomariovs vai-se tornando pouco a pouco um espelho da classe que o utiliza.

Mas isto não explica a coloração social-democrata que tem vindo a tomar a ideologia soviética. Para a entender, temos que entrar em conta com a situação internacional em que se move.

Os objectivos soviéticos podem resumir-se em duas palavras: acabar com o imperialismo, impedir novas revoluções de Outubro. De fac to, a condição de sobrevivência para o regime soviético passa pela supressão dessas duas ameaças. Não pode haver segurança para os gestores “comunistas” enquanto estiverem sujeitos às agressões e à pressão económica da burguesia monopolista.

Mas seria desastroso para eles que da luta contra o capitalismo nascesse em qualquer ponto do mundo um Estado de ditadura do proletariado. Isso poria a nu a falsidade do seu “socialismo” e levá-lo-ia à derrocada. Nasceu daqui o social-imperialismo da burguesia soviética, a necessidade de intervir à escala mundial para minar simultaneamente as bases do imperialismo e as bases da revolução proletária. É preciso explorar a luta operária e dos povos oprimidos como força de choque contra o imperialismo. Mas há sempre o risco dessa luta ir longe de mais e desembocar na revolução.

Assim, a burguesia soviética encontrou os seus aliados naturais no plano internacional: a aristocracia operária e os quadros dos países capita listas, como tutores do movimento operário; as burguesias nacionalistas dos países dependentes, como tutoras dos povos oprimidos. Esses aliados naturais, contudo, há que disputá-los à influência do imperialismo, ganhá-los através de concessões, oferecer-lhes garantias.

E daqui nasce a componente social-democrata da ideologia oficial soviética: “passagem pacífica ao socialismo”, nacionalismo pequeno-burguês, reformismo, etc. tudo o que possa convencer essas forças burguesas intermédias de que têm “todo um mundo a ganhar” e nada a perder se se juntarem ao “campo socialista”.

Tudo afinal tem o seu sentido neste mosaico contraditório. A ideologia soviética tem que adular as aspirações operárias ao comunismo, desculpar-se diante da peque na burguesia, subornar o nacionalismo burguês, para fazer reverter toda esta miscelânea em benefício do seu ideal de sociedade — um mundo em que não existam os pesadelos do imperialismo e da revolução proletária e onde reine a ordem do capitalismo de Estado.

Ideologia retrógrada e tortuosa, ela parece indicar, só por si, uma classe de transição, sem futuro, condenada a ser laminada entre a agonia do imperialismo e um novo ascenso da revolução proletária.

É cedo para profetizar o destino do “comunismo” soviético. Só a análise à sua base económica e à sua dinâmica social poderá apontar respostas seguras. Para já, uma coisa parece clara: o burguês que fala pela boca de Ponomariov não pode ser confundido com o capitalista, o proprietário, a administrador do Ocidente; é um novo tipo de burguês. Admirador secreto da ordem mas fazendo pose de comunista porque já não tem uma propriedade pessoal a defender. Obrigado a dar vivas assusta dos à revolução, mas incerto quanto ao futuro. Não são sintomas de uma classe saudável.

Política Operária nº 5, Maio-Junho 1986

 

Um pensamento sobre “Salada russa

  1. E mesmo uma salada russa :
    O nacionalismo pequeno-burguês tem horror ás guerras “justas” percebesse bem os codimentos ser “contra” o imperialismo e a ditadura do proletariado passar esta salada russa para atrasar a revolução diria sefocála,não ir tão longe.
    Manter o capitalismo com outras côres.
    É inevitável a revolução de outubro e imprevisivel !

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