PCP – Almada: a verdadeira doença

Francisco Martins Rodrigues

Uma organização operária em decadência, afogada pelo reformismo – é esta a origem dos conflitos que têm vindo a público.

A organização do PCP em Almada tem estado em foco na imprensa e a presença de Álvaro Cunhal na 5ª Assembleia Concelhia, que teve lugar em 13 de Março, ainda mais veio avivar as especulações sobre a crise que estaria em marcha.

Como as provas dessa crise, para dizer a verdade, são escassas, os pêcêpólogos procuram fazer render o mais possível o pequeno escândalo criado em torno de confusos conflitos pessoais entre autarcas, infectar os despeitos, dar-lhes dimensão política e descobrir associações entre contestatários e o “grupo dos seis” de Vital Moreira.

Avolumar todos os possíveis focos de dissidência no partido e fazê-los confluir numa corrente oposicionista no congresso de Dezembro tornou-se uma causa apaixonante para todos os que aspiram a ver PCP finalmente “modernizado” – isto é, ainda mais dócil e colaborante do que já é.

Mas o caso é que os problemas do PCP na cidade existem e são muito mais sérios do que pode fazer crer a guerra entre autar­cas. O relatório de actividade apresentado pela Comissão Concelhia à Assembleia, documento a que tivemos acesso, revela as raízes da crise que corrói a organização “comunista” de Almada. É uma crise polí­tica e social que se estende hoje, estamos convictos, a todas as organizações operá­rias do PCP. E que explica o espaço cada vez maior que no interior do partido encon­tram os elementos mais oportunistas.

NÚMEROS ENGANOSOS

Com 6.500 membros, 120 organismos de empresa, 1.300 Avantes vendidos semanalmente, maioria absoluta em quase todas as autarquias do concelho, influên­cia sem partilha em todas as grandes colec­tividades populares, a organização de Al­mada continua a exibir uma aparência de poderio.

Mas os sintomas de doença que trans­parecem do relatório desmentem essa im­pressão.

O número de membros teve uma baixa de 400 nos últimos dois anos. Um quarto dos membros tem pouco ou nenhum contacto com a organização. Em Dezembro de 1987, 45,7% dos membros “não tinham pago qualquer quota”. O número de organismos declarados decresceu de 293 para 257 desde a Assembleia anterior, há dois anos, havendo além disso “um funcionamento irregular ou nulo de alguns organismos”. Há organismos que “armazenam” a impren­sa em vez de a distribuir. As dívidas de imprensa “já perfazem nos últimos anos algumas centenas de contos”.

A organização real é pois muito menor do que os números globais deixam supor, contrai-se rapidamente e está a envelhe­cer: enquanto os membros com menos de 30 anos baixaram de 985 para 697, os mem­bros com mais de 50 anos subiram de 2.093 para 2.339. O que significa que o partido não tem poder de atracção sobre os jovens e tende a reduzir-se ao núcleo herdado do tempo do fascismo e do 25 de Abril, núcleo predominantemente inerte.

ORGANIZAÇÃO OPERÁRIA EM DECADÊNCIA

Mais significativo ainda é o facto de a organização enfraquecer na classe operá­ria, ao mesmo tempo que cresce entre os empregados e quadros: desde a Assem­bleia anterior, o PCP perdeu em Almada 700 operários industriais, enquanto os empregados, quadros e intelectuais subi­ram de 1.477 para 1.570, representando actualmente já um quarto da organização. São citadas apenas 18 células de empresa. Constata-se que a grande maioria dos núcleos de empresa “não funciona”. Regista-se a inexistência de células em muitas empresas “apesar de haver membros para as formar”. Em dois anos, o partido perdeu mais de 100 delegados sindicais e dezenas de dirigentes sindicais. A União dos Sindi­catos local (USCA) existe só no papel. Os boletins de empresa “perderam dinâmica ou deixaram de se fazer”. Têm diminuído as vendas de imprensa nas bancas e algumas grandes empresas deixaram de fazer ban­cas.

Explicar esta decadência da organiza­ção operária apenas pelos despedimentos na Lisnave e pelo encerramento da Parry & Son, da Comp. Portuguesa de Pesca e da Rankin (cortiça), como faz o relatório, é tentar iludir as causas políticas de fundo.

“DEFESA DA ECONOMIA”: CAPITULAÇÃO

Que efeitos teve na classe operária de Almada o desgraçado processo de “viabili­zação” da Lisnave, imposto aos militantes a golpes de campanhas “anti-esquerdistas”? Como podem os operários não se desmo­ralizar ao ver o contraste entre a propa­ganda balofa das “conquistas irreversíveis” e as cedências negociadas de cada vez que há um enfrentamento? Há ou não uma des­mobilização geral, provocada pela buro­cratização arranjista da máquina sindical? Tem vindo ou não a política do partido a roubar à classe operária a confiança nas próprias forças?

Sobre tudo isto, é escusado procurar explicações no relatório. O partido “previu e alertou” para o que iria suceder, e com isto deu o seu dever por cumprido. Com isto, e com as lutas simbólicas para “sensibilizar os órgãos de soberania” e com os projectos risíveis de “defesa da economia nacional”.

Assim, na indústria naval do concelho, onde nos últimos anos foram lançados à rua mais de 6.000 operários, o PCP gaba-se de ter apresentado em devido tempo “um plano de renovação da frota” e de se ter batido pelo “desbloqueamento dos grandes projectos nacionais”. Se os governos, possuídos de “fúria destruidora”, insistiram em “desmantelar a capacidade produtiva instalada”, que mais poderia o PCP fazer?

A negociação de novas capitulações vai continuar. Na ENI, que está em viabilização depois de ter suprimido mais de 300 postos de trabalho, o relatório avisa que “os trabalhadores vão ter que negociar direitos e regalias”. Por toda a parte, o quadro é o mesmo: recuar sem luta; lutar a sério seria “aventureirismo”.

A ATRACÇÃO PELOS QUADROS

Por estranho que pareça à primeira vista, a constante perda de influência operária não é o que mais preocupa os dirigentes “comunistas” de Almada. O relatório olha para mais longe. A ausência de directivas para recuperar base operária contrasta com os avisos de que “se mantém preocupante a baixa percentagem de técnicos e intelectuais” e de que “há desatenção e incompreensão pelos problemas dos quadros técnicos e intelectuais e outras camadas médias”.

Na realidade, nada há de estranho nisto. Os dirigentes do PCP em Almada seguem a linha geral do partido nesta questão, que é apostar no recrutamento de técnicos e administrativos como chave para ganhar influência nas empresas, apostar na con­quista de intelectuais como meio para alar­gar espaço na opinião pública.

É a opção lógica de um partido que ambiciona fazer ouvir os seus pareceres acerca da reforma da sociedade, influen­ciar governos, criar uma “convergência democrática” a qualquer preço. Evidentemente, para o PCP a classe operária conti­nua a ser importante, mas apenas como base de apoio e de pressão; os quadros é que são a verdadeira alavanca para aplicar o seu programa. Operários já há muitos; o que falta são quadros.

Isto, contudo, não pode ser dito assim, cruamente, para não espantar os operá­rios. Por isso tem que se insistir no mito de uma identidade de interesses entre os ope­rários e os quadros:

“Sendo uma camada social numerosa e em crescente proletarização, cujos interes­ses são cada vez mais coincidentes com os dos demais trabalhadores – diz o relatório – os quadros técnicos e intelectuais estão cada vez mais com os restantes trabalha­dores na luta em defesa dos seus direitos e interesses”.

E como os operários resistem por ins­tinto a passar atestado de proletários aos engenheiros, a sua desconfiança de classe é censurada como reaccionária: “A direita tem tentado aproveitar todas as tendências de obreirismo, igualitarismo e sectarismo que aqui e ali ainda proliferam e que temos de corrigir”.

Esta lógica da “convergência democrá­tica” leva mesmo o relatório a reclamar maior apoio aos pequenos e médios comer­ciantes e industriais e a congratular-se com a criação da Confederação das Pequenas e Médias Empresas. Aqui desliza-se já para um compromisso directo com o patronato, contra os interesses dos trabalhadores, que devem deixar de ser “sectários”…

“CAMPANHA ALEGRE E VIVA”

Sobre as questões de política geral do partido, o relatório limita-se naturalmente a papaguear as posições do Comité Central, insistindo no hábito mórbido de transfor­mar em êxitos as sucessivas derrotas acu­muladas desde há dez anos.

Ficamos a saber que “se tem tornado cada vez mais difícil aos governos enganar aqueles que sentem na carne os efeitos dolorosos de uma política de desastre nacional”; “tem sido crescente a participação dos trabalhadores e da população na luta por um novo governo e uma nova poli­tica”; e que “a luta pela convergência e unidade democrática” deu provas positivas nos diversos processos eleitorais. Porquê, apesar disso, tudo corre contra as previ­sões do PCP? Mistério que não é explicado aos militantes.

Nas eleições de 19 de Julho, a táctica do partido teria sido ajustada; a CDU “fez uma campanha alegre e viva em que o esclareci­mento foi a nota dominante”. Mas, sem que ninguém perceba porquê, constata-se a seguir que “houve um aumento da absten­ção e grande parte desta é do eleitorado CDU”, o que colocou o PSD pela primeira vez como o partido mais votado no conce­lho.

Nada desarma porém o optimismo sui­cida dos funcionários do PCP de Almada. O absurdo é atingido quando se afirma com toda a segurança que “a consolidação das nacionalizações torna praticamente inviável o rumo capitalista para a economia portuguesa (!). Os operários da base do partido não devem pois desanimar porque as conquistas continuam “irreversíveis”…

A agonia da organização que continua ainda hoje a ser a única que agrupa gran­des massas operárias em Portugal é evi­dentemente motivo de satisfação para to­dos os sectores da burguesia. Para os comunistas é mais um motivo para afirmar a urgência de fazer ocupar o lugar abandonado pelo PCP por um verdadeiro partido comunista operário.

Política Operária nº 14, Mar-Abr, 1998

 

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