Francisco Martins Rodrigues
O vosso programa anuncia uma “análise marxista rigorosa do 25 de Abril”. Não direi tanto. Nos debates que temos travado ao longo destes 28 anos temos procurado inspirar-nos no marxismo e no leninismo mas a questão não é fácil. Vou só abordar alguns tópicos que podem ser mais polémicos.
Primeira questão, a mais frequente: Por que é que uma revolução tão pujante e que despertou tanta esperança foi tão facilmente derrotada?
A nossa resposta: porque não chegou a ser revolução.
Tornou-se hábito designar a crise de 1974-75 como a “revolução de Abril” para exaltar o movimento popular desses meses, tantas vezes caluniado pola reacção. Mas para que esse grande movimento tomasse a envergadura de uma revolução autêntica teria que inverter as relações entre as classes. Detonado por um golpe militar, o movimento de Abril manteve-se sempre sob a autoridade do Exército, o pilar da ordem burguesa. Foi isso que permitiu que, dezanove meses mais tarde, o Exército interviesse em sentido oposto e roubasse ao povo o que tinha ganho. Assim, apesar de amputada das colónias e privada da couraça protectora do salazarismo, a burguesia atravessou com êxito o delicado momento da sua modernização.
Entendamo-nos. O movimento popular do 25A é o maior acontecimento da história moderna de Portugal: derrubou a ditadura fascista, pujo fim às guerras coloniais, conquistou novos direitos para os assalariados, abalou todo o sistema político. Foram nacionalizados os grandes grupos monopolistas, os assalariados ocuparam os latifúndios. Pola primeira vez na nossa história o povo perdeu o medo dos ricos e fê-los tremer com as ocupações de empresas, terras e casas, as experiências de autogestão e controle operário, a liberdade de greve, a iniciativa nas ruas, as moções dos plenários, o saneamento de fascistas… As criações do movimento de massas enriqueceram o movimento revolucionário português e internacional. Nós, os comunistas da “Política Operária”, somos discípulos desse grande movimento.
Mas é preciso reconhecer que, em face da grandeza das tarefas que se colocavam, toda essa audácia foi tímida. Os trabalhadores consentiram que o novo poder democrático poupasse os fascistas, só tomaram a gestão de empresas quando abandonadas pelos patrões, pediram sempre a legitimação das suas acções ao MFA e nunca recorreram à violência – o “terror anarcopopulista” é uma invenção da burguesia. A ideia da necessidade de conquistar o poder esteve sempre excluída para o proletariado, mesmo o mais avançado.
Essa timidez do 25A ditou a sua derrota e o posterior marasmo do movimento popular. A actual arrogância da burguesia e a resignação do proletariado não são fruto da derrota da revolução, mas de não ter havido revolução. Aliás, grande milagre seria que houvesse uma revolução e uma contra-revolução com duas dezenas de mortos. Tivemos sim uma crise revolucionária que, devido à imaturidade política do proletariado, se deixou sufocar sem chegar a desenvolver plenamente as suas potencialidades.
Quando uma parte da esquerda portuguesa evoca romanticamente a “revolução dos cravos” ela exalta no 25 A, não o que ele teve de avançado mas o que teve de atrasado. Sonha com uma “revolução” pacífica, capaz de levar todo o povo unido a provocar uma miraculosa rendição do poder. Isso não existe. A revolução de que a nossa sociedade está grávida só se poderá realizar através de uma convulsão aguda e violenta. É uma revolução anticapitalista e o mais certo é a burguesia lançar-se na guerra civil para defender os seus privilégios. Como de resto bem se viu polo comportamento das classes durante o vacilante ensaio de 74-75.
Segunda questão: Mas a explosão popular que respondeu ao golpe dos capitães não indicava um movimento revolucionário de grande envergadura, amadurecido em 48 anos de luita contra a ditadura?
O milhão de pessoas nas ruas no 1º de Maio de 74 indicou a força do sentimento democrático no povo, mas também a sua menoridade.
A propósito da ditadura de Salazar, fala-se sempre na PIDE, no campo de concentração do Tarrafal, no partido único, na Censura. Diz-se menos que ela foi durante décadas apoiada e aceite não só pola grande burguesia mas pola massa da pequena burguesia e por extensos sectores dos empregados e operários. De outro modo seria impossível uma ditadura manter-se quase meio século no poder com um nível de repressão relativamente baixo (e quando digo “baixo” não estou a minimizar os crimes do salazarismo mas a pô-los em comparação com o franquismo, por exemplo). Isto nada tem de estranho: num país de capitalismo atrasado e patriarcal, é fácil um regime autoritário impor uma “união nacional” em torno da ideia da estabilidade e da ordem, abafando as vozes contrárias.
A deslocação do sentimento popular contra o regime foi lenta: foi preciso uma luita esgotante e isolada dos sectores operários mais avançados, primeiro os anarquistas, depois e sobretudo os comunistas, com o seu árduo trabalho subterrâneo de esclarecimento; foi preciso despertar as grandes massas para a política através das candidaturas oposicionistas de personalidades conservadoras (1949, 1958); mas foi preciso sobretudo a guerra colonial estender-se ano após ano com a perspectiva da derrota à vista – para o movimento contra a ditadura ganhar boa parte da população. Só nos últimos cinco anos, quando o regime, gasto, se abeirava do fim, por não ser capaz de sair da ratoeira das guerras coloniais, se generalizaram as greves e a oposição à ditadura se estendeu a camadas mais vastas da pequena burguesia e do semiproletariado, da Igreja, até de parte da alta burguesia.
Daí o consenso universal em torno do golpe dos capitães, que leva tanta gente a maravilhar-se com esta revolução sem tiros e sem sangue. Esquecem que os cravos em Lisboa foram possíveis graças aos tiros e ao sangue dos guerrilheiros africanos.
E por quê, durante décadas, os “democratas”, como eram chamados, hesitaram em passar à acçom? Porque receavam o vazio de poder. Tinham mais medo do povo do que do fascismo. Os 16 anos da I República tinham mostrado como era difícil manter a ordem neste país, não por o proletariado ser especialmente forte mas por a burguesia ser fraca.
Essa fraqueza crónica manifestou-se de novo no 25 de Abril: planeara-se um regime militar presidido por um fascista retinto (Spínola) e em poucas semanas já estava tudo de pernas para o ar. Impreparada para lidar com o povo após meio século de “lei da rolha”, a burguesia entrou em pânico ao embate das manifestações e greves; boa parte do MFA começou a vacilar, o aparelho judicial e repressivo ficou paralisado, muitos capitalistas fugiram, os líderes burgueses juravam nos comícios que eram polo socialismo. As tentativas golpistas de 28 Setembro e 11 Março foram tão frouxas e inábeis que quase se tornaram cómicas. De repente, o inimigo de 50 anos parecia evaporar-se. Isto criou um optimismo enganador entre os trabalhadores. Em vez de uma luita de vida ou de morte para arrancar o poder à burguesia, entrou-se no que parecia um passeio a caminho do “poder popular”. Sob a protecção do COPCON, a ala “socialista” do MFA.
Terceira questão: Mas não é um facto que os governos provisórios adoptaram uma série de medidas sociais avançadas e que o COPCON apoiou os trabalhadores?
É indiscutível. A questão é saber a quem cabe o mérito dessas acções.
Durante muitos anos, a gratidão para com os capitães impediu na esquerda uma crítica de classe ao seu movimento. O progressismo do MFA (que, note-se, só despertou quando as guerras coloniais estavam perdidas) era sincero mas tinha o fôlego curto; era um conglomerado de tendências políticas das mais diversas que queriam basicamente fazer a transição da ditadura fascista para uma democracia burguesa, idealizada por muitos sob cores paternalistas.
Depois de um ano de escaramuças indecisas, o MFA viu-se a braços com o duche frio do resultado das eleições para a Assembleia Constituinte: um ano após a queda do fascismo, três quartos dos eleitores votaram no centro-direita e na direita (PS e PPD), e não era só gente arrebanhada pelos patrões, pelos padres e pelos caciques da província; eram em grande número empregados, funcionários públicos, professores, operários. O acto “cavalheiresco” de realizar eleições quando estava por desmantelar a estrutura herdada do fascismo e a massa retardatária predominava só pode ser explicado polo preconceito legalista de uns e polo secreto desejo de pôr termo à agitação e restaurar a ordem, da parte de outros.
Mas naquele momento entregar o governo ao PS significaria criar um conflito de proporções imprevisíveis com o movimento popular avançado. Além disso, o golpe spinolista fracassado de 11 Março provocara uma viragem à esquerda nas assembleias do MFA. O comando das operações caiu assim durante algumas semanas nas mãos dos adeptos do “socialismo militar”. Para fazer face à pressão da direita (sabotagem, fuga de capitais e ameaça de descalabro económico) e da esquerda (ocupações, plenários, manifestações), o MFA lançou-se na aceleração da “revolução” por cima: nacionalizações, lei da Reforma Agrária, lei do arrendamento rural, imposição de um pacto aos partidos sob o lema da “aliança Povo/MFA”, “poder popular”, “via socialista”…
Com estas medidas, que puseram a burguesia a bradar que se queria “implantar o comunismo”, Vasco Gonçalves procurava conquistar apoio popular contra a direita mas sem deixar sair o controlo dos acontecimentos das mãos dos militares. Teve a reacção clássica dos “moderados” em período de crise do poder: O Estado “socialista” tornava-se o fiel depositário da propriedade burguesa enquanto durasse a crise; e com os órgãos de “poder popular” sob a autoridade do MFA dava-se uma aparência de satisfação aos revolucionários, evitando o pior (aliás, os “esquerdistas” eram expressamente ameaçados se desobedecessem).
Porém, os gonçalvistas subestimavam a reacção da direita. Fortes da sua vitória eleitoral, apoiadas polo imperialismo, todas as correntes burguesas, do PS e da maioria do MFA à Igreja e aos fascistas declarados, passaram ao ataque, em verdadeira histeria, com os atentados bombistas e os incêndios do ELP e do MDLP no Centro e Norte do país, mas também com grandes manifestações, como as de 18-19 Julho. No Verão estava em marcha um grande movimento de massas contra-revolucionário apoiado no terrorismo e as fileiras da esquerda começaram a vacilar e a reduzir-se. O que fez a impotência do PCP, da ala esquerda do MFA e da generalidade da chamada “esquerda revolucionária”, foi a incapacidade para subir a parada, para dar à direita a resposta mais enérgica que a nova situação exigia: para desarticular a frente “ordeira”, que ia do PS aos fascistas, seria preciso libertar a iniciativa das massas, apelar à revolta dos mais pobres, castigar os bombistas – mas isso seria a terrível “desordem”. Faziam-se grande manifestações “para meter medo” quando eram precisas outras formas de coacção para paralisar a instabilidade da pequena burguesia e separá-la da campanha reaccionária.
Vasco Gonçalves era na realidade um pobre reformista que tentava satisfazer os trabalhadores com as suas leis e discursos, para evitar que eles “tomassem o freio nos dentes”, ao mesmo tempo lançava advertências inócuas ao campo direitista, que engrossava dia a dia, seguro da impunidade. Depois que o pronunciamento de Tancos fez cair o seu governo, a direita, cada vez mais segura de si, encaminhou o conflito para o desenlace, o golpe de 25 de Novembro.
Mesmo a ala otelista do MFA que se definiu como última esperança da esquerda era igualmente impotente. Otelo oscilava, como sempre fijo, entre as proclamações arrojadas e os gestos dúbios (o pior de todos, a reintegração do fascista Jaime Neves, saneado pelos seus soldados). Os mais activos defensores desta corrente não sabiam como abrir espaço entre as duas grandes forças – gonçalvistas dum lado e “Grupo dos Nove”, do outro. Tinham uma crença ingénua nos órgãos de “poder popular” descentralizados; na prática, viam no namoro aos oficiais “revolucionários” a chave da conquista do poder através de um golpe militar das esquerdas, armadilha a que acabaram por ser levados polas provocações da direita.
O êxito fácil de mais do golpe de 25 de Novembro resultou dessa impotência dos que se lhe opunham. O movimento chegou a Novembro derrotado por falta de estratégia própria.
Quarta questão: Se não havia condições para uma revolução socialista e para o poder popular, para quê radicalizar ao máximo as reivindicações, levando o proletariado para um impasse e correndo o risco de provocar uma contra-revolução sangrenta? Os M-L não se comportaram efectivamente com imaturidade e aventureirismo? O PCP não teve razão nesse ponto?
Primeiro, há que esclarecer que nós não inventámos palavras de ordem radicais: acompanhámos as exigências dos operários mais combativos, das mulheres dos bairros pobres, dos soldados, dos assalariados agrícolas. A nossa inesperada influência resultou disso mesmo: de irmos ao encontro do estado de espírito da vanguarda. E a vanguarda tinha razão; perante uma crise do poder, a única táctica sensata e responsável dos explorados é abrir o mais possível o rasgão, arrancar o máximo de concessões, para ver até onde se pode chegar. Ficar na expectativa é suicida.
Naturalmente, esse comportamento da vanguarda não é seguido de imediato pola grande massa, inclusive dos operários. A primeira reacção desta é desaprovar, assustar-se e recuar perante essas “loucuras”. Mas em período de crise revolucionária, quem tem que indicar o ritmo e criar os factos consumados é a minoria de vanguarda. Só ela habitua os espíritos a perceber que chegou a hora de deitar abaixo as velharias. Só pola audácia a vanguarda vai tomando consciência de si própria, ganha a confiança da massa e se educa para futuros confrontos.
Sabia-se, dadas as condições internacionais e a juventude do nosso movimento, que não tínhamos a revolução socialista ao nosso alcance. Mas tudo o que se avançasse ajudava a desmantelar a ordem tradicional, com a sua carga asfixiante de abuso patronal, tirania burocrática, estupidez clerical, caciquismo, machismo, chauvinismo, conformismo, ignorância – todo o peso de uma sociedade que não fijo uma grande revolução burguesa e foi passando ao capitalismo por pequenas etapas. Se algum saldo positivo ficou apesar de tudo do 25 Abril, foi graças ao comportamento radical da vanguarda.
Além disso, quando se critica o “excesso de ambição dos radicais” esquece-se que o prolongamento da crise poderia ter acelerado a agonia do franquismo. Se em vez da manobra liberalizante de 78 a Espanha tivesse conhecido um levantamento antifascista por reflexo da crise portuguesa, as possibilidades revolucionárias na Península teriam dado um enorme salto em frente.
Quinta questão, associada à anterior: Mas os marxistas-leninistas não poderiam ter procurado a unidade com o PCP contra o avanço da direita? não era o PCP a principal força política no movimento operário e popular?
Era, sem dúvida. Único partido implantado nas massas e com uma longa resistência à ditadura, o PCP ganhou desde a primeira hora a hegemonia no movimento popular. Mas usou-a sempre para lhe retirar a carga revolucionária.
Deixem-me exemplificar com alguns factos: um mês após o 25 A, um dirigente do PCP (com longos anos de prisão e clandestinidade) foi expulso de uma assembleia de trabalhadores dos CTT por dizer que a sua greve era “útil à reacção”; o PCP estivo contra a exigência surgida na rua de “nem mais um só soldado para as colónias” porque isso enfraquecia o novo governo nas negociações com a guerrilha; quando começaram as ocupações de empresas, o Avante deitava água na fervura assegurando que “o investimento estrangeiro tem ainda vastas possibilidades de uma vantajosa e larga retribuição”; em Setembro 74, quando os operários dos estaleiros navais figérom uma combativa manifestação polo saneamento dos fascistas, o PCP organizava uma manifestação de homenagem a Spínola, para tentar apaziguá-lo; Cunhal, como ministro de Estado, assinou uma lei antigreve que não chegou a ser aplicada devido ao repúdio dos trabalhadores; após o 28 Setembro, para baixar a temperatura das massas, o PCP lançou a campanha por “um dia de trabalho para a Nação”; o PCP condenou o cerco popular ao congresso dos fascistas do CDS, no Porto, como “um acto desordeiro”; no 7 Fevereiro, com milhares de operários a protestar nas ruas de Lisboa contra a entrada no Tejo de uma esquadra da NATO, um dirigente do PCP veio à televisão difamar a manifestação e pedir um “acolhimento amistoso” aos marinheiros americanos; no decurso do golpe spinolista de 11 de Março, quando os “esquerdistas” acudiam ao quartel atacado e saqueavam a casa de Spínola, o PCP ordenava aos seus membros a máxima contenção para não agravar as desinteligências entre os militares; no Verão de 75, o PCP desaprovou a greve dos operários do República contra os jornalistas social-democratas; desaprovou a manifestação de apoio aos jornalistas de esquerda da Rádio Renascença, despedidos pola Igreja, proprietária da estação; condenou como “provocação” o assalto popular à embaixada de Espanha quando Franco assassinou cinco antifascistas.
Situações destas repetiram-se vezes sem conta. Para estar ao lado do avanço popular tínhamos que estar contra o PCP, que nos acusava invariavelmente de “aventureiros” e “provocadores”.
Isto não foi surpresa. Desde os anos 40 o PCP apostara na mobilização dos trabalhadores como força de choque ao serviço de uma queda controlada do fascismo. Cunhal constituíra-se há muito prisioneiro da democracia burguesa, à qual hipotecara o seu futuro.
Logo após o 25 de Abril, o PCP passou a aplicar a estratégia dupla a que seria fiel durante esses dezanove meses: impulsionar as acções de massas como capital para negociar uma normalização democrática, onde o seu lugar estivesse assegurado; e portanto opor-se às acções “excessivas” que poderiam assustar o MFA e a pequena burguesia. A função do “radicalismo” do PCP era servir de pára-raios popular, apoiar as reivindicações para depois as canalizar para objectivos ordeiros. Por isso mesmo, a burguesia exigiu logo no primeiro dia a sua participação no poder, para o ter como refém e garante da manutenção da ordem.
No Verao Quente, quando sentiu o perigo de lhe escapar o controlo do movimento de massas, o PCP foi obrigado a radicalizar a linguagem para não deixar os operários passarem para a extrema esquerda, mas não mudou de estratégia. Exemplo: a adesão em Agosto à FUR (Frente de Unidade Revolucionária) onde havia vários grupos da extrema-esquerda, para sair cinco dias depois logo que negociou um compromisso com os militares conspiradores. Em Novembro esta táctica dupla tinha chegado ao extremo: grandes manifestações para “meter medo” à direita como o cerco à Assembleia da República pelos operários da construção civil enquanto decorriam conversações secretas para garantir a legalidade do partido depois do golpe. Com o maior desplante, Cunhal veio mais tarde deitar as culpas da derrota para cima do movimento que ele próprio ajudou a fazer abortar.
Sexta questão: Se os marxistas-leninistas estavam com a vanguarda porque fôrom incapazes de orientar o movimento de forma mais positiva?
Os M-L estavam completamente impreparados para as tarefas que lhes cabiam.
A possibilidade de levar a cabo uma insurreição antifascista, fazendo da queda da ditadura o início de uma revolução autêntica, tinha sido defendida em 1964 polo CMLP, o primeiro grupo marxista-leninista. foram aí lançados os alicerces ideológicos para uma ruptura com o reformismo e para uma nova corrente comunista portuguesa. Todavia, nos dez anos decorridos até ao 25 de Abril, a implantação dos marxistas-leninistas no proletariado progrediu muito lentamente. Tiveram um papel positivo na luita contra as guerras coloniais e pouco mais.
O 25 de Abril pôs a nu o tremendo atraso da nossa corrente. Faltava-nos uma linha política que clarificasse o rumo ao movimento de massas e nos afirmasse como real alternativa à esquerda do PCP. A desproporção entre as perspectivas abertas pola crise de poder e a pequenez dos grupos era tal que os activistas deixavam-se ir à deriva dos acontecimentos, agindo por instinto. E faltava-nos consistência organizativa; só no Verão de 74 alguns grupos começaram a negociar a unificação, numa corrida contra o tempo, quando todos os esforços deviam ser virados para o movimento de massas.
Estas desvantagens foram agravadas polo equívoco político em que assentava a corrente M-L, em resultado das contradições em que se debatiam o PC da China e o PT da Albânia. Alguns grupos faziam, em nome do marxismo-leninismo, um ataque ao PCP e à URSS muito semelhante ao da burguesia, de tal modo que vieram a tornar-se colaboradores activos da ofensiva reaccionária no Verão-Outono de 75. A ruptura na corrente M-L entre a verdadeira e a falsa esquerda tardou demasiado e esta confusão sob a mesma bandeira de tendências comunistas e social-democratas desacreditou os “M-L” junto dos operários de vanguarda e dificultou-lhes a desagregação da influência do PCP.
A isto somava-se uma errada concepção de Partido. Formados na escola stalinista, os M-L tomavam por sinais de “vigor bolchevique” o medo ao debate, as fórmulas dogmatizadas, o burocratismo organizativo, o revolucionarismo declamatório. Pior ainda, no desejo de ser reconhecidos internacionalmente, abdicaram da sua autonomia e submeteram-se à tutela de autoproclamados “representantes do movimento comunista internacional” (na realidade oportunistas), o que viria a ter um resultado desastroso no partido, formado justamente a seguir ao 25 de Novembro. Mas essa é já outra história.
Sétima e última questão: Pode dizer-se que a insuficiente unidade popular perdeu o movimento de 25 de Abril?
Eu diria antes que faltou a unidade popular combativa e sobrou a unidade popular conciliadora. Faltou um corte entre os interesses revolucionários do proletariado e os interesses da burguesia “progressista”, que só queria apoiar-se no povo para modernizar o capitalismo. Por falta de independência política, os trabalhadores deixaram-se “enrolar”.
Se virmos o comportamento do conjunto da classe burguesa ao longo da década de 70 é perfeitamente nítido o esquema clássico: para passar dum regime para o outro, a burguesia “democrática” apoiou-se primeiro no povo contra o fascismo para a seguir se aliar aos fascistas contra o povo. O produto desta astuta manobra em duas fases foi a podre democracia capitalista que nos governa.
Com o 25 de Abril aprendemos na prática a lição leninista: não basta centrar o fogo no inimigo principal; há que distinguir rigorosamente os interesses do proletariado dos da camada burguesa que lhe fica mais próxima – a pequena burguesia. A trajectória do PCP, como mais tarde a do PC(R), resultou da ausência dessa distinção. Parecia vantajoso misturar numha corrente única os sentimentos antifascistas das várias classes. Mas a simpatia da pequena burguesia polo povo era apenas a busca de uma força de choque. Submetido à contraprova da agitação revolucionária popular, o progressismo da pequena burguesia mostrou o que valia.
De resto, nas duas últimas décadas, o alinhamento da pequena burguesia portuguesa tem vindo a modificar-se: o capitalismo penetra em todos os poros da sociedade, abatem-se as velhas barreiras entre o capital nacional e o capital estrangeiro, as oportunidades de negócio e de consumo abrem novos horizontes para esses sectores em termos profissionais, culturais, etc. A ânsia de justiça social e a paixão patriótica que mobilizavam boa parte da pequena burguesia no tempo do fascismo evaporaram-se.
O esvaziamento das fileiras da extrema-esquerda, em paralelo com o esclerosamento do PCP, correspondem assim à debandada da parte “esclarecida” da pequena burguesia. Ao reorganizar-se, o movimento comunista deverá ter presente que, à medida que a luita anticapitalista se vai definindo com maior nitidez como o objectivo directo do proletariado, mais difícil é contar com o apoio da pequena burguesia, mais vital é assumir os interesses próprios do proletariado.
Há agora quem diga que “os portugueses ficaram vacinados contra o esquerdismo”. Estou plenamente convicto, polo contrário, de que, sob o aparente esquecimento actual, as experiências avançadas de democracia proletária vividas em Portugal estão inscritas na memória colectiva. Ressurgirão forçosamente amanhã, numa nova situação de crise de poder. Haverá então que levá-las à sua consequência: o derrube e expropriação da burguesia.
(Intervenção nas VI Jornadas Independentistas Galegas, Maio de 2002)
Livros disponíveis de Francisco Martins Rodrigues
Anti-Dimitrov (2009, 2ª ed., 328 págs. – 21 €)
Os Anos do Silêncio (2008, 120 págs. – 11 €)
História de uma Vida (2008, 320 págs. – 13,65)
Abril Traído (1999, 120 págs. – 8,40 €)
A Conspiração dos Iguais de Ilya Ehrenburg (186 pp.), tradução de FMR
(2004, 190 págs. – 12 €)
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